Desde de quando comecei a tocar, nas mais variadas situações, ouço comentários do tipo: “Você é músico, claro que entende o que eu estou dizendo.” Ou então: “Vocês, músicos, têm mais sensibilidade.”
Curiosamente, esses dias, recebi, da minha querida amiga flautista e educadora Maria Antônia Lacerda, um vídeo documentário, que mostra o quanto nosso cérebro se “ilumina” quando é exposto a música, fator que mais fez aumentar a atividade cerebral, nos mapeamentos feitos por ressonância e tomografia, em voluntários nas mais diversas situações.
Esse fato chamou a atenção dos neurocientistas, que resolveram fazer o experimento não apenas com ouvintes, mas também com músicos. Observando que tocar, faz com que o cérebro pareça um festival de fogos de artifício, exigindo uma total integração entre as diversas áreas do cortéx.
Para saber se isso significava ganhos generalizados, participantes que não eram músicos começaram a tocar e obtiveram melhoras nas atividades extra música, alcançadas pelo aumento da concentração, cooperação, memória, planejamento e estratégia. Para tocar, é preciso acessar várias camadas simultaneamente como: ritmo, melodia, harmonia, leitura, emoção, lembranças, memória, interpretação, criação, sensações e movimentos.
Na minha vivência, relaciono, ainda, o mundo dos músicos ao humor, com piadas, jogos e brincadeiras, às vezes ácidas, que exigem raciocínio rápido. Além de conhecer muitos que também são prodígios em outras áreas, ligadas a matemática, sendo quase impossível saber do que mais gostam.
A percepção, apesar de estar ligada a todos os cinco sentidos, ultrapassa a cognição, que é a aferição das cores, tamanhos, formas, distâncias, texturas, sabores, temperaturas, ruídos e odores. Dando início ao processo de interpretação, relacionando as informações, memórias e afetos. E é a ferramenta principal do músico.
Ronaldo Paladini, meu “pai musical” - como se intitula - quando me recebe em sua casa, abre vários tipos de cerveja, vinhos, cigarros, pastinhas e aperitivos para tocarmos. A cada trago um comentário sobre aquele sabor, aroma, textura ou acorde, tudo no mesmo raciocínio. A música, além da profissão, nos permite perceber - observar, aprender, reconhecer e valorizar - as coisas boas da vida, através dos amigos e das experiências.
Perceber é contextualizar, criar relações. E como essas relações se dão entre planos paralelos, eu diria que perceber é uma forma de traduzir. Pois, permite que a mensagem chegue, como se estivesse na mesma língua e possa criar empatia. Do intra, para o interpessoal. Para isso, é fundamental saber o que o outro toca, o que o outro diz. O singular dá lugar ao plural, as coisas se misturam e se tornam pessoais, assumindo um novo lugar na vida de cada um.
Para traduzir, nosso cérebro, através do inconsciente, faz analogias que chamamos de metáfora. Nos mitos e parábolas, frequentemente, se usa essa comparação que se adapta a cada tempo, pois a percepção contextualiza e traduz para uma cena mais contemporânea. Isso nos permite falar sobre temas mais difíceis de um jeito mais fácil, evitar algum tipo de censura e contar a mesma história para crianças e adultos.
Numa orquestra, seus instrumentos específicos, com diferentes timbres, movimentos e momentos de ataque, tocam simultaneamente, notas e frases distintas se complementando e cumprindo seu papel na metáfora da música. Mas poderíamos usar como analogia um corpo, cujos orgãos têm funções diferentes e contribuem para um mesmo objetivo. Ou, então, uma cidade, um planeta ou sistema solar... Tudo que se soma e se equilibra.
Essa forma de analisar e proceder, contextualizar e traduzir, possibilitou, para mim, um estilo musical de viver, buscando sempre a harmonia. Já que, em última análise, ela representa toda a simultaneidade da música.
Assim, desde a cozinha, saindo da massa, do molho, do risoto e da água mineral, das cervejas que faço com meu amigo Lauro J. Oliveira da Silva, das texturas que se transformarão em paladares diferentes do ovo frito, cozido, quente, mexido ou pochê; tudo é coisa musical... Passando pela reforma da casa, procurando equilibrar o espaço, a temperatura, a limpeza, a economia, a praticidade, o conforto e a beleza; tudo é coisa musical... (Chá de panela - Guinga e Aldir Blanc)
Até a prova de física. Um dia resolvi uma questão sem ter estudado. Fazendo analogia musical. O filme: Ben-Hur, antes da corrida de bigas, o velho explica que o cavalo mais lento faz a curva por dentro para segurar o mais rápido. A questão: Duas chapas feitas de materiais distintos e diferentes coeficientes de dilatação, se esquentadas envergam para qual lado ou não se movem?
Até a próxima!