terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Coluna de Dezembro de 2019 para o Jornal Portal:

Certa vez, comentando com uma conhecida do bairro que o tempo passava rápido e nossas filhas haviam crescido, disse que recordava dela passeando grávida. Ela, bem humorada, sem pestanejar, brincou: “Você lembra? Mas ela é adotada...”

Fiquei super sem graça. Ela riu bastante. Desculpei-me pela confusão e disse, cismado, que a cena estava na minha mente. Pra me acalmar, ela falou que, muitas vezes, conversamos enquanto ela passeava de carrinho com a bebê. E que eu, como o povo, que aumento, mas não invento, apenas criei uma versão.

Lembrei que várias vezes, pessoas me colocaram em histórias das suas vidas que nunca estive. Já pensei, até, estar ficando com problema de memória, tamanha a certeza com a qual afirmavam tais situações que, para meu alento, muitas vezes se passavam, até mesmo, em cidades onde nunca estive.

Aprendi a não confiar na mente, pois ela completa, inventa, edita e cria um playback que passa com tamanha perfeição na tela de nossa cabeça, que poderíamos jurar, diante da Bíblia ou do polígrafo, fatos irreais. Por isso, além da opinião pessoal, que é subjetiva, ainda existe esse complicador no cotidiano.

A percepção influencia diretamente nosso senso do que é real. Por isso, é importante compreender como ela se dá. Na psicologia, a aferição feita pelos sentidos é denominada cognição e, só depois de interpretada passa a ser chamada de percepção. Portanto, é influenciada pela maneira como nossa espécie trata tais dados e pela nossa imersão no que é socialmente esperado.

A escola que estuda nossa percepção como algo estruturado, chama-se estruturalismo ou Gestaltismo e nos conscientiza, mesmo não esgotando o assunto, que existem fatos relevantes a se levar em conta e a discutir. Exemplos nos cinco sentidos, mostram o quanto podemos ser enganados por ela.

As brincadeiras com a visão, talvez sejam as mais exploradas, basta ver as gravuras de M. C. Echer e tantos outros artistas que estudam e exploram em seu trabalho, maravilhosas distorções desse sentido.

O olfato nos prega uma peça, que é o costume. Mendigos, lixeiros, donos de cachorro e moradores de manguezais, são exemplos de pessoas que não sentem mais o mau cheiro de si, do lixo, do bicho e do lugar onde moram.
  
Ja contei aqui que, devido ao receptores de tato que temos nos pés, nas mãos e no peito, surdos podem dançar. E da sacada da Igreja, na idade média, para provar a presença de Deus, fazendo com que os organistas tocassem notas inaudíveis, tão graves, que faziam tremer as paredes, janelas e vitrais.

Com o paladar, posso citar o exemplo que vivi no aniversário de uma amiga, que fez propaganda, durante toda a semana, sobre o bolo de morango delicioso que ela levaria. Na hora que provei, cuspi, achando que estava estragado, pois o bolo era de pêssego e minha mente não conseguiu entender o outro sabor...

Com a audição, ainda sem falar de música, podemos lembrar do fato de que ventiladores, ar-condicionados, latidos, miados, gritos, etc. podem incomodar bastante alguns na hora de dormir e outros, já habituados, nem percebem, já que o cérebro tende a não “gastar” a atenção da percepção com algo óbvio.

A percepção rítmica, faz com que se perceba, sempre, a sílaba tônica como primeira, isso influencia na forma como escrevemos a partitura. Mas tal regra não foi criada por músicos. Experimente: repita a palavra café e veja que num momento sua mente vai inverte-la. Isso já não acontece com a palavra faca.

Na música, percepção é uma matéria. Uma cadeira da faculdade. Obviamente, destina-se a treinar os alunos a perceber, ensinando técnicas que vão dando a ele, gradualmente a capacidade de aferir, ritmo, notas e acordes.

Num experimento com o aumento da velocidade de lâmpadas que piscavam alternadamente, concluiu-se que os observadores percebiam, primeiro, elas acendendo e apagando, depois, trocando de lugar e, por último, constantemente acesas. O cérebro interpreta, à sua maneira, o que está além de sua capacidade.

Como disse no início, a mente edita. E é de muita serventia, ter noção de que somos influenciados pela maneira como isso se dá e o tipo de distorção que pode acontecer, quando não tem a capacidade de aferir. Afinal, ficamos a sua mercê.

Além disso, pessoas que detém essa informação, nem sempre estão dispostas a nos alertar e, sim, usá-las contra nós. Portanto, se estivermos alertas e dispostos a conhecer as coisas de forma mais profunda, podemos procurar evitar os enganos. Não só nas artes, mas em vários aspectos de nossa vida.
 
De aorcdo com uma pqsieusa de uma uinrvesriddae ignlsea, não ipomtra em qaul odrem as lrteas de uma plravaa etãso, a úncia csioa iprotmatne é que a piremria e útmlia lrteas etejasm no lgaur crteo. O rseto pdoe ser uma ttaol bçguana que vcoê pdoe anida ler sem pobrlmea. Itso é poqrue nós não lmeos cdaa lrtea isladoa, mas a plravaa cmoo um tdoo. Vdaerde!

Feliz Natal! Muita consciência para todos nós! Um açbaro e até a pxmiróa!

Coluna de Novembro de 2019 para o Jornal Portal:

Noutro dia, num dos muitos apagões que ocorrem aqui no Grajaú, meu enteado queria saber como esquentaríamos o almoço sem o microondas, descartado pela falta de energia. E eu lhe disse que, em outra época, só usaríamos o fogão e os fósforos. E que, ainda assim, o mundo era bem parecido.

Conforme falava, ia me dando conta de que, apesar de se perder mais tempo em tarefas periféricas, a vida era, realmente, a mesma vida. E o constante incômodo com essa perda de tempo, nos levava a sonhar em ser livres destas tarefas “menores”, permitindo nos dedicar a coisas mais nobres.

Enfim, chegadas tais tecnologias, o que fizemos? Usamos nosso tempo pra salvar o planeta e a humanidade? Nos dedicamos às artes e a cultura? Não. Nos tornamos obcecados pela gratificação material instantânea e passamos a acreditar cegamente no nosso merecimento por vencer as “batalhas” diárias.

A internet traz toda essa recompensa, consumista e “analgésica” em um click, nos livrando de viver a vida real. No entanto, não podemos viver uma vida teórica. Não se come comida teórica, é preciso plantar, esperar, colher, cortar, cozinhar, temperar e só então comer. A vida real, acontece em outra velocidade.

Hoje, nos sobra mais tempo para jogar fora. Nem todos conseguem enxergar. Os artistas sim, a maioria. Mas, além de vítimas, também dependem das tecnologias para se divulgar, criar seu espaço, sua rede... E se passa longe do bom uso, que é equilibrado e imprescindível. O que está acontecendo?

Nestes dias, recebemos no grupo dos colunistas uma charge mandada pela Renata Couto, que brincava com os pecados, chamando-os de “os sete pecados atuais”: Gula (Ifood); Preguiça (Netflix); Ira (Twitter); Luxúria (Tinder); Soberba (Linkedin); Inveja (Facebook) e Vaidade (Instagram). É para parar e pensar...  

Só quando a luz acaba, lembramos o valor das coisas ditas “obsoletas”. E toda nossa modernidade se transforma em trevas rapidamente. Perdidos, percebemos que nossa superioridade é muito frágil. E, apesar de crer que tudo se ajustará, desempenho meu papel de artista, dizendo o que vejo de errado.

Aluísio Machado, disse em “Minha filosofia”: “Água demais mata a planta” e, pensando de maneira inversa, como o rei Mitríades vislumbrou, um veneno tomado em pequenas doses nos torna imunes a ele. De forma semelhante, se chegou às vacinas, dos vírus e bactérias enfraquecidos. O bom ou mau uso pode transformar algo em nocivo ou benéfico.

A faísca para a iluminação do Buda, se deu quando meditava, às margens de um rio e ouviu a lição de música, vinda de um barco que passava. O mestre dizia: “Se apertar demais, a corda arrebenta. Se afrouxar demais, não toca”. É no equilíbrio que se encontra a doutrina do Budismo - O caminho do meio.

O excesso de informação e a grande profusão de artistas descartáveis, têm criado uma enorme distorção na geração atual, que não tem referências, nem base para discutir. Tornaram-se autômatos, repetindo discursos prontos que, de fato, não representam o que acreditam ou gostariam de dizer ou defender.

Neste mundo onde não se pode apenas correr, é preciso ser maratonista. Não se pode beber uma cerveja, é preciso ser especialista. Não se pode beber um vinho sem ser enólogo. E existe cagador de regra para tudo, os jovens acabam buscando em outras épocas, pessoas reais, que falavam menos e agiam mais.
Sem deterem o saber de que era impossível, faziam...

Ter informação não nos leva, necessariamente, ao caminho certo. É preciso intuir qual informação é relevante... Farejar e usar a razão para compreender o caminho, fazendo as devidas correções e compensações. Não há um ditado que diz que agir com fé é, primeiro, botar o pé para, depois, Deus botar o chão?

É preciso desconstruir o herói. Não se ganha todas as batalhas, apenas, se entende que é preciso ganhar mais que perder e que, para isso, todas as vitórias são importantes, mesmo as pequenas. Saber o que não se quer e saber negar é importantíssimo. Como garantem os amigos do A.A. e N.A. - Just for today.

Fernando Pessoa, disse: “A renúncia é a libertação. Não querer é poder”. E é verdade! Nunca foi tão necessário nos libertarmos da ilusão que nos cerca e nos aflige. Que nos acelera e nos dilacera por querermos ser, apenas, nós mesmos e, não, mais uma cópia feita na Ásia.

A internet é fruto do homem, terra fértil para o bem e para o mal. Devemos saber o que vamos estimular e o que devemos deixar atrofiado. O provérbio indígena diz que o lobo que alimentamos é o lobo que vai ficar mais forte e se tornar o dominante. “Por isso, cuidado, meu bem! Há perigo na esquina”.

Na esquina e dentro de nós... Até a próxima!

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Coluna de Outubro de 2019 para o Jornal portal

Quando novos e imaturos, é comum darmos um crédito indevido à coisas bobas como a “caneta da prova”, para tirar boas notas ou a “blusa da sorte”, com a qual se consegue, sempre, conquistar uma garota... Essas superstições são ruins, pois acabam fazendo do sujeito das ações, alguém desimportante.

Seria impossível tirar boas notas em cálculo, sem sequer conhecer a matéria, mesmo portando a tal caneta. Da mesma forma, aquela menina que nunca te deu bola, não vai mudar de opinião, só porque você está com a tal blusa, que sempre funcionou com aquele amigo, que te emprestou para a ocasião.

Ainda que houvesse algo capaz de tais realizações, vale lembrar que estes objetos precisariam da presença de alguém em especial, para que a mágica acontecesse, ou então, nada feito. Apenas “a pessoa certa” conseguiria tirar a espada da pedra, devido às suas virtudes e dignidade. Formando um par amalgamado.

Dar o crédito de conquistas à objetos, nos afasta do mérito e, também, de nossa responsabilidade, dando um vulto enorme ao acaso. Dessa maneira, é mais construtivo termos na cabeça esta ideia de complementariedade, na qual os “poderes” de tal objeto, dependem de alguém com quem eles se combinam.

Para a realização de qualquer trabalho, a ferramenta boa e correta é de extrema importância e está diretamente ligada a bons resultados. Porém, é preciso ter cuidado pra não deixar de agir, se perdendo na busca por condições idealizadas. Tendemos a queimar grande parte de nossa energia e motivação com o que não importa.

Parte do “som” de um músico, realmente, tem relação com seu instrumento, porém, a partir de um certo nível, as diferenças técnicas passam a ser cada vez mais sutis e, para a maioria, é impossível perceber. Quando percebidas, podem ainda, não ser apreciadas, dependendo de cada gosto musical.

Em momentos de grande pressão, tocar num instrumento que estamos habituados, pode trazer certa tranquilidade. Por este motivo, só percebemos que nosso instrumento é ruim, depois de tocar em um bom e voltarmos a tocar nele. Assim, como se deve ter cuidado para não ficar engessado, em um instrumento ruim, é preciso ter cuidado para não ficar numa eterna busca pelo inatingível.

Um instrumento caríssimo, “que toca sozinho”, depois de ser comprado, perde a graça e se torna, apenas, um instrumento, com suas características reais, seus prós e contras. No entanto, aquele que ainda não temos, manterá  sempre seu status mítico, já que o desejo torna essa busca interminável.

Alguns instrumentos são, de verdade, muito bons, outros, têm muita fama, por terem sido usados por artistas consagrados ou em registros históricos. O fato é que, na grande maioria das vezes, um modelo não funciona bem na mão de todos os que o adquirem. Porque cada um tem seu tamanho, jeito de tocar, pegada... E vai render mais com o instrumento que combinar melhor consigo.

Existem casos de artistas ruins que se beneficiaram com a tecnologia, bem como de artistas fantásticos, que usam métodos e ferramentas inusitadas. Tais fatos incríveis, de superação e capacidade de aproveitar as oportunidades do seu tempo, criam e propagam os mitos, que deveriam ser encarados como exceção.

Querer ser diferente ou exceção está bem longe de ser, de fato, diferente. A obsessão por tornar-se mito, já criou famosos oportunistas e arrogantes. Sem ética, se dispõem a aproveitar qualquer janela para aparecer e, normalmente, criam mediocridades que consideram geniais e adoram outros como eles.

No entanto, o gênio é natural, inventivo, necessita se expressar e seguir seu instinto. Transborda verdade em sua perspectiva sobre a arte e a criação, não se sente acuado ao mostrar seu jeito, estilo e interpretação próprios e, normalmente, não se vê como gênio ou age forçosa ou premeditadamente.
 
Artistas como Hermeto Paschoal, se dizem operários a serviço da música. Se entendem como instrumento da arte, agindo sempre de acordo com o que ela necessita. Jogando pro time, quando está com ou sem bola e, até mesmo, fora do jogo.

Curiosamente, o instrumento torna-se um instrumento do instrumento. Um apoio para traduzir o que habita em nós, através da linguagem da arte. Apesar de não fazer parte de nós, da arte ou do que vamos dizer, ele nos acompanha em toda caminhada. Mesmo sem saber, exatamente, para onde vamos e o que vamos dizer.

Dominar um instrumento, antes de tudo, é dominar a si mesmo. Conhecer limites, explorá-los e ultrapassá-los, sempre que possível. Ter disciplina, paciência, tenacidade, concentração... Compreendendo que a arte está além dele e de nós, e que é preciso buscar um entendimento de como ela se processa no mundo, nos seres, na sociedade, nos ouvintes e em nós mesmos.

Sua subjetividade e efeito são maiores que ela mesma, porque sintetizam todo seu objetivo: uma comunicação verdadeira, através de sensações e sentimentos. A descoberta e a construção de um discurso artístico é fruto da experiência e não de, efetivamente, se chegar a qualquer conclusão, afinal, precisamos de movimento e a busca é o que nos move.

Boas buscas! Até a próxima!

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Coluna de Setembro de 2019 para o Jornal Portal

Por quantos anos tivemos certeza de que a letra daquela canção era outra? Isso acontece demais. E a interpretação incorreta já começa pela dificuldade em compreender o que está sendo dito, seja pela má dicção, má gravação, pela prosódia (acento) não respeitada, palavra desconhecida ou fora de contexto.

Obviamente, nos dias de hoje, com tanta informação, é difícil ficarmos tanto tempo na ignorância, bastando apenas um “Google” para ter na palma da mão a resposta, trazida pelo oráculo. No entanto, numa época não tão distante, podia se passar a vida nas trevas, caso não se tivesse acesso a encartes de discos.

Cantei “Alegre menina”, de Jorge Amado e Dori Caymmi, por muito tempo: “Por que fizeste isso tão de mim, alegre menina”, até uma testemunha ocular do encarte do disco, me dizer: “Tem gente que não sabe que a música começa com o pai, perguntando ao sultão, que levou sua filha como esposa: O que fizeste, sultão, de minha alegre menina”. No que respondi: “Eu, por exemplo”...

O mais curioso é que, muitas vezes, o português não faz nenhum sentido, mas por falta de alguma palavra ou expressão que nos traga alternativa cabível, ficamos sem saída. E a letra sem nexo vai permanecendo no lugar da correta.

Neologismos, muitas vezes são herméticos. “Avohai”, de Zé Ramalho, que nos remete ao nome de um personagem, décadas depois, revelou ser “avô e pai”. Nela ainda ouvi: “Neblina tu vai brilhando” que só depois soube ser: “Neblina turva e brilhante” - nesse caso, os acentos de música e letra estão descasados.

Não podemos esquecer das pequenas trocas de palavras que se equivalem, mas não constituem erros tão crassos, afinal não somos computadores para decorar absolutamente tudo. O pior, com certeza, são os erros de interpretação.

“Bandolins” de Osvaldo Montenegro, chegou a ter, pronta, uma equipe de gravação para um clipe, no Tivoli Parque da Lagoa. Mas quando o diretor do Fantástico foi questionado sobre a locação, respondeu: “Como fosse um parque” e teve que ouvir que a letra era: “Como fosse um par, que nessa valsa triste...”

Mesmo que a letra esteja correta, existem mil maneiras de se interpretá-la, podendo ser interessante saber suas histórias, mas também muito frustrante.

“Manuel, o audaz” é uma música feita para o Jipe do Toninho Horta, que despencou ladeira a baixo. “Diana”, dos mesmos parceiros, foi feita para a cadelinha de Fernando Brant, que havia morrido.

A interpretação é sempre de quem ouve e não pertence mais ao artista. Quando ele não pode mais ser consultado ou não quer responder, a dúvida permanece no ar, e muitos são, os adeptos da obra poder ganhar vida própria, mesmo que venha a ser interpretada de maneira inversa a sua inspiração.

“Apesar de você”, de Chico Buarque, foi feita para o Médici? Geni era uma prostituta ou um travesti? Aquela canção de amor do Fred Mercury falava sobre Mary, sua esposa ou sobre Paul, seu namorado? Importaria saber? Ou o que vale é o quanto nos toca, por razões que nem mesmo entendemos?

Nossa experiência, sempre será nossa maior referência para entender o mundo e, quase sempre, diferente da dos outros. Dela surge nossa interpretação que influenciará outras experiências e interpretações, criando um ciclo infinito...

Na música, “Back in Bahia” de Gilberto Gil, eu ouvia: “Lá em Londres, vez em quando, me sentia longe daqui.... Nervoso querendo ouvir Celly Campello, pra não cair/ Naquela fossa/ Em que via um camarada meu de corpo belo cair...”

Essa letra não faz sentido? Mas, está incorreta. Pela falta de encarte e internet, durante muitos anos, cantei errado. Eu, simplesmente, inventei o “corpo belo”, que na verdade é “Portobello” - Observe, que a interpretação da minha versão é até mais profunda - que presunção! - e sugere uma condição depressiva na qual, mesmo um camarada bonito e malhado, poderia estar vivendo no exílio...

Mesmo que a música seja, muitas vezes, bem mais simples e direta, sua interpretação é livre, incontrolável e natural. Acontecendo à parte de permissões e vontades, torna-se manifestação abstrata de nossa liberdade e livre arbítrio.

Apesar de dizerem que tudo está relacionado, já aconteceu de atribuírem algumas músicas que fiz, à motivos que não tinham a menor relação, por isso, é preciso ter cuidado ao afirmar que uma letra, refere-se a isso, àquilo ou a um fato real. E, caso não tenha a chancela do autor, é preciso sublinhar que aquela interpretação é, apenas, uma possibilidade, que fez algum sentido.

Já tive notícias de um festival, onde o apresentador contou uma história triste sobre a canção que seria executada a seguir, dizendo que era muito difícil para o cantor, pois era sobre a perda de sua esposa etc. Muito sem graça, o compositor subiu ao palco, desmentiu o boato e tocou a música...

Salve a idiossincrasia! Até a próxima!

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Coluna de Agosto de 2019 para o Jornal Portal

Às vezes, pensamos em desistir. Largar a tudo que temos nos dedicado e deixar que o mundo e, principalmente, os humanos que o habitam, se explodam. É difícil viver, sem ver reconhecido nosso esforço, nossa dedicação e, mais ainda, nossa abnegação, já que a maior parte do trabalho de um artista é invisível.

A arte exige que estejamos disponíveis vinte e quatro horas do dia, sete dias da semana, trinta dias do mês, doze meses do ano... Quanto mais disponíveis, mais conseguimos transmiti-la e mais somos instrumento, através do qual ela se manifesta. Grandes artistas dedicam-se integralmente.

Perceba que no início da carreira, a maioria dos artistas, tem bastante volume e conteúdo, no entanto, com o passar do tempo, essa pujança diminui bastante e ele passa a viver uma inspiração mais escassa. É óbvio que existe uma diferença hormonal considerável entre a juventude e a vida adulta, que atenua a energia, mas que, normalmente, é recompensada com maturidade.

O sucesso, apesar de ser um reconhecimento, pode levar o artista para longe de si, fazendo-o perder a conexão. Não é difícil imaginar o quanto de empenho, antes dedicado ao trabalho, passam a demandar as festas, comemorações, divulgações, recepções e eventos, onde sua presença se torna obrigatória.

Não quero dizer que sua vida deva ser de clausura e celibato, mas que é preciso saber equilibrar os deveres entre o mundo profano e o seu sacro ofício. Avaliar, por exemplo, se a entrega de um prêmio é, de fato, tão importante, que justifica sua ausência numa festa de família ou festejo tradicional em sua cidade natal.

Afinal, tudo que o conecta às raízes, pode ser de suma importância para que se mantenham abertas as portas e seu fluxo de troca com a fonte. Hoje, a conduta profissional justifica ações de ética discutível e confunde, principalmente na cabeça dos mais jovens, a dedicação ao ofício, com a dedicação à fama.

Devemos ter entre nossas referências, artistas que souberam ser grandes em todos os sentidos, para podermos nos espelhar e usá-los como parâmetro. Pois não há legado na arte vazia, nem vida vazia para quem se entende tendo nas mãos uma missão. Somente esse compromisso pode tornar uma obra imortal.

Da reflexão sobre ela, vem a herança e os melhores conselhos. Mais do que querer deixar um nome para a posteridade, mostrar um propósito para a humanidade que habitará o planeta. Apesar da distância física, social, cultural, temporal e de linguagem ou qualquer outro obstáculo que possa haver.

Essa semana, tive aula com o Maestro Jobim, sobre sua introdução ao “Samba do avião” em intervalos de quartas. Lembrei que ele havia gravado uma outra música com uma abordagem semelhante, um baião de João do Vale chamado “Pé do lajeiro” e fomos estudar:

Em Mi bemol, com quadratura irregular, essa gravação de 1981, mexeu muito comigo, uma frase profunda feita nesses tais intervalos, flertando com o politonalismo, fritou meu cérebro. Descobri que o arranjo era de João Donato.

Semana passada a aula foi com Jota Moraes, através do seu arranjo para “Lindo, lago do amor” de Gonzaguinha. Como pode uma música tão simples e pequena, ter tanto pra se ensinar de harmonia? Aulas intensas:

Três mortos e dois vivos, que nunca pude conhecer, conversar ou sequer estar perto. Mas que me deram a oportunidade de aprender através de sua obra, me deixando muito agradecido e próximo a eles, como se tivessem se tornado, de fato, velhos conhecidos. Que saíram de dentro de um disco para me ajudar.

E as aulas não param por aí, nem se limitam apenas a música, às vezes, chego a confundi-las. A aula onde Chico César recitou o verso de “Beradêro”: “A cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire”. Seria de poesia ou de sociologia?

Candeia, em Moral e Cívica, nos ensinou: “Quem não lutar pra conquistar o que sonhou/ fazer por merecer/ se iluminar na luz que há no vencedor/ pode até ganhar/ e méritos não ter/ Aquecer os seus ideais em muito amor/ com o poder nas mãos não brincar/ o arvoredo do mal derrubar/ e arrancá-lo bem na raiz/ Sua vida no bem sublimar/ pra ajudar a erguer o pilar/ de um mundo bem mais feliz”.

Muito antes do ensino à distância, esses mestres já ensinavam através da arte. Muitos viveram em grande dificuldade, tendo que fazer, das frustrações, combustível. Obcecados por deixar um legado, muitas vezes, até, sem reconhecimento em vida, mantiveram-se fieis às suas ideias. Apesar de não pedirem nada em troca, só pelo fato de nos motivarem a seguir, também nos fazem motivar muitos outros, num ciclo virtuoso que mantém acesa a chama.

Mais importante que desvendar os mistérios do mundo, é ouvir o chamado destes homens, que também ouviram o chamado e sentiram-se comprometidos a perpetuar a história. Mesmo sem ter nada a favor, sempre que tiveram oportunidade, desistiram de desistir. Por eles, sigamos singrando!

Até a próxima!

sábado, 3 de agosto de 2019

Coluna de Julho de 2019 para o Jornal Portal

Se vierem me perguntar se vivo de música, obviamente, direi que sim. É um fato. Através dela, seja tocando, ensinando ou compondo, consigo tirar o meu suado sustento. Mas, ainda assim, sinto que a resposta está incompleta.

Pois ainda que trabalhe todos os dias, inclusive aos finais de semana; escreva sobre ela aqui no jornal, no meu blog ou na página do meu grupo, é ela que me faz relaxar no repouso e, nas horas de lazer, é o meu assunto predileto.

Não há overdose, apenas, prazer. Pura manifestação do que habita em mim e se torna maior a cada dia. Não se trata de dom, não me torna um bom músico, apenas, um ser que sente, pensa e expressa música.

Hoje, entendo a música como um estado de espírito, assim como, um dia, ouvi Jô Soares falar sobre o humor. É uma maneira de entender o mundo. Um ponto de vista. Quem sabe, usando a língua da informática, a música seja minha linguagem de máquina e meu sistema compreenda tudo sob esse prisma.

O Português acaba ficando secundário pois, apesar de ser a interface de comunicação com meus conterrâneos e lusófonos do mundo inteiro e, através dele, falar sobre música, é a sua análise e não a do Português, que traz tantas comparações e analogias, fazendo tudo parecer ter algum sentido.

Por isso, peço perdão aos leitores se falo sobre política, saúde, antropologia, psicologia, etc. misturando tudo no mesmo texto, afinal, através dela, tudo me parece compreensível e relacionado. E, ainda que não haja palavras, há um som, um grito ou um acorde. É a mais antiga das linguagens e das artes.

Não é apenas uma filosofia de vida, mas a própria vida, que se apresenta em pequenas doses, já que nela e no seu exercício, se encerram as questões da nossa existência, seja através da prática ou da teoria, seja de forma literal ou metafórica. Falar de música é falar da vida, aprender a tocar é aprender a viver.

Sergio Chiavazzoli, multi-instrumentista da pesada, que, entre outros trabalhos, toca na banda de Gilberto Gil, diz que não se estuda um instrumento para se tocar bem, mas para, através dele, entender a vida. E que os músicos são fios condutores da música que habita o etéreo. Quanto mais se doa e mais conectado se está, mais ela flui e acontece.

Não se trata de religião, apesar de uma acepção desta palavra ser religar, o que nos permite interpretar que a música ou qualquer outro trabalho, realizado com satisfação, pode restabelecer conexões perdidas e nos conectar, novamente, ao universo ou ao criador, que se encontra acima de nomes e religiões.

Ao estudar música, aprendemos de tudo! Que o som não se propaga no vácuo e que por isso, a explosão dos Vingadores não poderia ser ouvida. Que o índio botava o ouvido no chão para ouvir a cavalaria, pois o som é mais rápido no sólido e, assim, daria para ouvir o trote, mesmo a uma distância impensável.

Que se coloca uma caixa de som embaixo d’água, para ajudar atletas de nado sincronizado a manterem-se no ritmo, embora a música fique distorcida pelo meio ser a água e não o ar. E que o sonar do submarino imita o do golfinho, emitindo sons e calculando as distâncias, conforme recebe a resposta do eco.

Que os surdos dançam através do tato, pois percebem as batidas do ritmo na sola dos pés e no peito. Assim como, na época medieval, a presença de Deus era imposta aos fiéis, nas notas graves e silentes dos órgãos de tubo, inaudíveis ao ser humano, sentidas no vibrar do peito, das paredes e vitrais das igrejas.

Conhecer os processos humanos de percepção do som é muito importante para poder criar. Da mesma forma, é preciso saber nossas reações a música, esta que é a elaboração do som, criada e consumida por nós. Além de suas bases: ritmo, melodia e harmonia... Cujo conhecimento permite seu pleno domínio.

Os criadores, sabem brincar com as sensações de repouso, movimento, tensão, surpresa, relaxamento etc... Criando verdadeiros discursos, que provocam, intencionalmente, diversas sensações nos espectadores. Gerando também, nos próprios músicos, paralelos entre a realidade da vida e da música.

Qual a vantagem em ser destaque, se uma nota depende de outras para virar acorde e, sendo a nota principal de um, será secundária em todos os outros? Por que dar tanta atenção a um pequeno erro se o que vale é a intenção? Afinal, o acento rítmico pode transformar um “desafino” numa nota de passagem.

Não há sentido nos extremos, tudo acontece em ciclos e devemos, em prol do equilíbrio, contrabalançar. Colaborar ao invés de competir. Deixar cada nota brilhar em seu momento oportuno, pois todas são fundamentais e irão aparecer. Há espaço... E tempo... Quem não entendeu isso, ainda não entendeu nada.

A música permeia todos os saberes como uma gravidade que une tudo. É a manifestação do divino, a forma de senti-lo e tocá-lo, seja no mundo material ou dentro de nós. E nos tornando seus embaixadores, botamos em prática a prece que diz: “...Reveste-nos de Tua beleza! E que todos quanto se chegarem a nós, sintam Tua presença e no decurso deste dia, possamos Te revelar a todos...”

Fiquem em paz!!! Até a próxima!

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Coluna de Junho de 2019 para o Jornal Portal

Tive um insight. Uma ideia especial. Algo tão legal que, na mesma hora, pensei em escrever aqui na coluna. Mas como estava no carro, levando minha filha à escola, acabei não tomando nota e nem gravando. Agora, trago essa sensação, nítida como no momento, mas não lembro do que se tratava...

Várias vezes, quando sento à frente do computador, as ideias vão sumindo, pulando para fora, se jogando noutros lugares e esvaziando minha cabeça. Acho que vão para os colunistas Ricardo Dias ou Marcelo Biar, não sei... É algo que, constantemente, acontece e gostaria de entender.

Nas “gravinas”, é comum brincarmos que: “gravando!” é “travando!”. Porque depois do tal aviso vem aquela paralisia imensa e aqueles erros bobos... Nas “guigues” ao vivo, quantos lapsos criam melodias, acordes e letras novas para músicas conhecidas, praticamente, nos tornando parceiros do compositor...

É lugar comum: na frente do professor, não há dúvidas. No médico, os sintomas não aparecem. No mecânico, o carro não apresenta defeito... É pegadinha? Porque isso acontece? Não seria bom compreender esses hiatos? Mas, pensando bem, acho que eles não têm a mesma origem.

As causas podem ser muitas, entre elas: o cansaço, a falta de concentração, o excesso de expectativa e de pressão, que abalam o psicológico, até mesmo, dos astros. E é fato: estar sendo observado, testado, vigiado ou, até mesmo, julgado, colocando em xeque o que somos, aumenta bastante o problema.

Obviamente, não é certo, inteligente, nem justo, julgar toda história de uma pessoa, por um momento da carreira onde houve um acerto ou um erro. Existem situações nas quais não se tem o menor controle ou influência. E o contexto, local ou global, influencia completamente em qualquer profissão.

Além das causas externas, naturais, sociais ou estruturais, estas, sanadas ao se trabalhar com profissionais qualificados, comprometidos e com salário digno, existem as internas, que não são eventuais, mas traços da personalidade e da educação, oriundas da falta de preparo, influência da soberba ou da falta de autoconfiança - duas pontas de uma mesma corda.

Enquanto uma tende a fazer análises superficiais, julgando que as coisas complexas são triviais; a outra, que também julga, supõe que tudo é demasiadamente complicado. A generalização não abrange os detalhes e essas duas faces da inconsciência, têm um quê de auto sabotagem.

A sedimentação técnica também é uma carência, já que para ocorrer, necessita de um número sem-fim de repetições, feitas corretamente, até que os elementos formadores da música se transformem em movimentos do corpo, tornando as ideias, impulsos medulares e mecânicos. Dino sete cordas é um exemplo disso.

Apesar de não ter sido o primeiro a tocar este tipo de violão, tornou-se sua maior referência, devido à linguagem que concebeu, utilizando técnica, conhecimento e criatividade. No entanto, depois de encomendar e adquirir o instrumento, ficou anos estudando em casa, tocando em público, apenas, o tradicional seis cordas, só se permitindo empunhar o sete, profissionalmente, depois de dominá-lo.

O domínio técnico faz os fãs pensarem que um “virtuose” pode ser bom em qualquer gênero, mas isso é um engano. Pois a preparação também inclui conhecimento da linguagem, clichês, referências, repertório fundamental do estilo... Se não for, através da vivência, há que se ter um estudo profundo, uma imersão muito bem feita, para que as lacunas sejam preenchidas corretamente.

É comum se pensar que tocar de improviso é criar algo totalmente novo, repentinamente, e isso é algo muito raro. Apesar do improviso ser um discurso não rascunhado, mesmo que se tenha uma boa retórica, é preciso conhecer, profundamente, o assunto sobre o qual vai se falar e dominar a língua, afinal, como seria possível discursar de improviso, num idioma desconhecido?

Todos os elementos que o improvisador utiliza, são frutos da sua experiência, do conhecimento da linguagem, das malandragens e “pulos do gato”, que estão nos detalhes, na capacidade de absorvê-los e somá-los às suas; e de encontrar um jeito próprio de expressá-los. É um compositor instantâneo e não um médium.
 
A palavra composição, entre muitas acepções, significa organização entre as partes de um todo. No que tange a criação, é criar uma colcha de retalhos, onde cada parte é tão conhecida, que pensamos ser nossa ou não ter dono.

Ao longo da jornada, temos contato com assuntos que nos causam maior interesse e, neles, nos aprofundamos, desenvolvemos e nos tornamos conhecedores. Mas isso não acontece a cada momento, em todas as nossas atividades, assim, vivemos de forma medíocre: entre as médias do mundo.

Já que não é possível ser bom em tudo, é preciso entender que isso é natural. Mas para estar acima dela, pelo menos no que nos mais interessa, é preciso querer se debruçar sobre os detalhes e saber que não existe um segredo escondido e, sim, algo que precisa ser construído, esmiuçado e sedimentado pela rotina.

E o mais inacreditável é ter ciência de que, na maioria das vezes, não estaremos disponíveis para a realização dos nossos próprios planos, preferindo um pouco de anestésico para esquecer os problemas e nos perdermos por aí.

Quer saber, vou dar uma relaxada... Até a próxima!

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Coluna de Maio de 2019 para o Jornal Portal

As notas sempre foram representadas por letras, denominadas cifras, desde que se têm notícia das primeiras formas de escrita e notação musical. Nos países de origem anglo-saxônica é assim até hoje: as sete primeiras letras do alfabeto A, B, C, D, E, F e G, representam, respectivamente: Lá, Si, Dó, Ré, Mi, Fá e Sol.

Alguns dizem que se começa pelo Lá porque é a primeira tecla do piano, outros, porque é a única nota com frequência exata. Os mais dados aos mistérios, dizem que maçons, influenciaram na escolha para que o “G”, sétima letra, símbolo de Deus, o Grande Arquiteto do Universo, coincidisse, exatamente, com o nome “Sol”, que é o símbolo do brilho de sua luz e sabedoria. Será?

Esse sistema, usado em muitos países, sofre um problema no momento de se cantar as escalas usando o nome de cada nota - o famoso solfejo. Pois, muitos nomes de letras são dissílabos, como: Alfa, Beta, Gama... E, fazia-se necessário nomes monossilábicos, para facilitar sua entonação.

Países latinos, influenciados pela igreja, adotaram outros nomes. O Monge Guido D'arezzo, no século XII, usou a primeira sílaba de cada verso do hino a São João, em latim, para batizá-las. E, durante a época em que a Itália dominou, culturalmente, o mundo, foram enormemente difundidas.

Eis o hino: “Ut queant laxis / Resonare fibris / Mira gestorum / Famuli tuorum / Solve polluti / Labii reatum / Sancte Iohannes.” Que significa: “Para que teus grandes servos, possam ressoar claramente a maravilha dos teus feitos, limpe nossos lábios impuros, ó São João.” As notas: Ut, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e San.

Mais tarde, Giuseppe Doni sugeriu que o nome Ut, fosse trocado por Dó. Seria apenas coincidência, ser a primeira sílaba de seu sobrenome? E o San foi trocado por “S.I.”, que, na verdade, é uma sigla feita com as duas primeiras letras de Sancte Iohannes. Esses nomes seriam mais sonoros.

As notas musicais são frequências que, como as horas, depois de cumprir um ciclo, voltam ao “mesmo lugar”, porém mais agudas ou graves, dependendo da direção tomada. Saindo da frequência batizada de Lá, que é 440Hz, se chega a outro Lá, tanto subindo a 880Hz (dobro), quanto descendo a 220Hz (metade).

A essa distância damos o nome de oitava, já que, no ocidente, entre estas duas notas iguais, encontrava-se outros sete sons. Posteriormente, percebeu-se que possuíam intervalos diferentes entre si e houve a necessidade de se usar mais 5 sons, para que a oitava se dividisse em 12 partes iguais.
Se estes novos sons tivessem novos nomes, haveria uma grande confusão, já que o entendimento, a maneira de se pensar, tocar e compor, baseava-se, há séculos, em um sistema de 7 sons. Por isso, foram entendidos como acidentes, variações nas notas antigas - agora naturais - adicionados de um sobrenome.

Por exemplo, a nota entre Dó e Ré, recebe os nomes de Dó sustenido (elevado) (#) ou Ré Bemol (abaixado) (b), dependendo de qual delas se substitui ou da direção do movimento que use as duas, a natural e a acidental. Os intervalos Mi/Fá e Si/Dó, são os menores e, por isso, sem acidentes entre suas notas.

A brincadeira entre os sons e seus nomes é algo comum, pode usar formas mais técnicas ou artifícios, solfejando os nomes das notas, no meio de uma canção, preenchendo um espaço sem letra com os nomes verdadeiros dos sons emitidos. Em “Dó Ré Mi”, da “Noviça rebelde”, suas notas realmente são entoadas, apesar da letra criar outra conotação para seus nomes.

Em “Samba de uma nota só”, o nome das sete notas é apenas falado com o objetivo de fazer rima, sem, na verdade, mudar de nota: “E quem quer todas as notas / Ré Mi Fá Sol Lá Si Dó / fica sempre sem nenhuma / fica numa nota só.“

Enriquez Bacalov e Sérgio Bardotti, na música “Il mio canto”, dos Saltimbancos, vertida como “Minha Canção”, por Chico Buarque, fizeram uma melodia baseada na escala de Dó, onde cada verso repete a mesma nota entre quatro e seis vezes e possui como primeira sílaba, o nome da nota que está sendo cantada:

Sobe: “Dorme a cidade / Resta um coração / Misterioso / Faz uma ilusão / Soletra um verso / Lá na melodia / Singelamente / Dolorosamente.” E desce: “Doce a música / Silenciosa / Larga meu peito / Solta-se no espaço / Faz-se certeza / Minha canção / Réstia de luz, onde / Dorme o meu irmão.”

Chico não deixa de ser gênio por não ter tido essa ideia, tampouco torna-se um, apenas, por causa dos famosos proparoxítonos do final de todos os versos da música “Construção”. Essas são apenas duas pequenas observações feitas em sua vasta obra, que tanto tem a nos impressionar, emocionar e ensinar.

Alguns amigos não gostam, que eu sublinhe que esta é uma versão. Mas tenho a certeza de que ele mesmo não quer, e nem precisa, ter o crédito pelo que não fez. É muito importante falar os nomes dos compositores e não apenas dos intérpretes ou tradutores, reconhecer sua obra e seus acertos, afinal, o cachê mais caro a um artista é o aplauso, o carinho e o reconhecimento.

Até a próxima!

terça-feira, 7 de maio de 2019

Coluna de Abril de 2019 para o Jornal Portal

Por vezes, disse, aqui na coluna, que há arte, até mesmo na maneira de se refazer ou repetir alguma coisa. É fato. Desde que haja verdade no que se diz ou na maneira de se dizer, é possível mudar sua forma, baseando-se no original.
A adaptação é uma atualização e torna o pensamento de outras épocas, mais próximo do nosso, para que as situações sejam mais inteligíveis, permitindo empatia e comunicação entre gerações distantes.
Não se trata, necessariamente, do objetivo fútil de repaginar a embalagem de um produto, que permanece o mesmo, apenas para atiçar a curiosidade do consumidor. Apesar desta ser uma estratégia muito usada atualmente, a arte é bem mais do que isso.
O grande químico Lavoisier, cunhou a célebre expressão: ”Na vida nada se cria e nada se perde, tudo se transforma.” E Eclesiastes, um pequeno livro do velho testamento, que vale a pena ler, nos adverte: “Debaixo do sol não há nada novo.” 
Assim, apesar de saber que é possível apenas se copiar, percebemos que através de um olhar artístico, é possível se adaptar, transformar e transcender, somando mais criatividade, fantasia, emoção e surpresa à ideia original, óbvia ou conhecida.
Um exemplo, é o conto “Os músicos de Bremen”, de 1812, dos irmãos Grimm, no qual um burro, um cachorro, um gato e um galo, fogem dos maus tratos de seus donos, formando uma orquestra e pelo caminho, param para pedir comida e abrigo numa casa, onde estão escondidos ladrões, com muitos pertences roubados. Os amigos, juntos, enfrentam os bandidos e devolvem o tesouro, tornando-se heróis.
Além do conto, ouvi esta história narrada em verso e cantada, na adaptação feita pela coleção Disquinho, com o título: “Os quatro heróis”. Estes vinis coloridos, foram muito conhecidos e queridos pelas crianças das décadas de 1960 à 1980. Tive a oportunidade de adquirir dois baús, com, aproximadamente, uns 50 títulos, na ocasião do seu lançamento em CD. Infelizmente, creio que ainda faltem alguns...   
Ele teve outra adaptação, feita na Itália, em 1976, na forma de musical, com o título “I musicanti”, que fez muito sucesso, tornando-se disco. Com letras e texto de Sergio Bardotti; música e arranjos de Luiz Enriquez Bacalov, artistas que também haviam colaborado no disco de Vinícius de Moraes chamado: “L’ Arca - canzoni per bambini”, a primeira versão musical do livro “A arca de Noé”, de 1975.
Bardotti, alguns anos antes, havia se tornado parceiro e amigo de Chico Buarque, quando verteu suas músicas de sucesso no Brasil, para o Italiano, no disco: “Per un pugno di samba”, de Chico, de 1970, lançado na Itália, na época do seu exílio.
Por causa dessa amizade, Chico pôde nos trazer, as bases do disco “I musicanti”, com todos os elementos de orquestra e arranjos, para então fazer a versão das letras para o Português, gravando, apenas, as vozes. Esta foi mais uma adaptação, bem sucedida, do conto, que aqui se chamou: “Os Saltimbancos”, em 1977.
Em 1981, o grupo de comediantes “Os trapalhões”, que na época enveredava pelo campo do cinema, fazendo diversas adaptações, com seguidos recordes de bilheteria, gravou um filme chamado: “Os Saltimbancos trapalhões”, mais uma versão do musical, que contou com algumas regravações e adição de novas músicas, todas, parcerias de Bacalov, Bardotti e Buarque.
É importante frisar que, até a época do Disquinho, não havia nada dirigido ao público infantil que o fizesse consumir, lotar cinemas e teatros ou comprar discos e álbuns de figurinha. Ele ainda não era tratado como público alvo ou nicho de mercado, como foi alguns anos depois, por um sem-fim de “artistas” de ocasião.
Fazia pouco tempo que os Beatles haviam aparecido e aquele comportamento febril, ao qual se denominava “bitolado” ou de “coqueluche” que, hoje, chamamos de “viral”, não era muito conhecido, muito menos compreendido como um fenômeno comportamental social e global.
Em contraposição a este alinhamento que se busca nos dias de hoje, é possível encontrar momentos históricos, nos quais, coube aos artistas, através de sua arte, o rompimento com a atitude e os costumes de uma época. Já que, enquanto seres e, por isso, sociedade, temos aquela, fatal, tendência à inércia.
Vítimas dela, corremos o risco de estagnar ou de querer permanecer no topo. Naquela óbvia situação em que vemos uma “estrela” querendo brilhar eternamente como tal e todos os que admiram ou não, querendo ocupar aquele lugar, por inveja ou admiração.
Na canção “Rock and Roll”, de Raul Seixas e Marcelo Nova eles dizem assim: “Já dizia Eclesiastes, há dois mil anos atrás, debaixo do sol não há nada novo, não seja tolo, meu rapaz. Mas nunca vi Beethoven fazer aquilo que Chuck Berry faz”.
Nessa verdadeira apologia à atitude questionadora, rebelde e, ao mesmo tempo, inovadora, do Rock, que em sua essência procura romper com o status quo e com toda e qualquer ideia de subjugar atitudes e pensamentos, através do medo, nossos heróis “Rauzito e Marceleza”, admitem que os dilemas do homem são sempre os mesmos, através dos séculos, mas lembram que sempre poderemos contar com nossa criatividade, para nos reinventarmos.   
Não se engane, a arte pode se transformar, mas sempre é arte, nunca cópia barata, nunca um mero “copy e paste”. Um pensamento abstrato vira um desenho; uma ideia vira uma peça de teatro; uma frase se transforma em poema e um grito em canção; um movimento vira dança, uma imagem vira roteiro, uma foto vira filme e uma pedra vira estátua; barro vira vaso, roteiros viram programas de TV, linhas de sistemas trazem emoção para o computador, tablet e celular...
Sigamos no nosso dilema de "Tostines": A vida imita a arte ou a arte imita a vida? Qualquer que seja a resposta, somos muito mais. A vida e a arte, vão, bem mais além, do que a imitação.
Um grande abraço e até a próxima! 

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Coluna de Março de 2019 para o Jornal Portal

Temos acesso a muita informação. E, nos dias de hoje, é difícil saber o que, realmente, é importante e relevante. Mas, neste mar de baboseiras, podemos encontrar pequenas ilhas paradisíacas e tomar conhecimento de fatos maravilhosos, que, podem ser experiências, absolutamente, desconhecidas para nós.
 
Para quem nasceu sem nenhuma limitação física ou mental, é difícil perceber que coisas simples, do dia-a-dia, possam emocionar tanto. Mas ao assistir a reação de daltônicos ao ver algumas cores pela primeira vez ou de pessoas com problemas de audição, ouvindo os primeiros sons, é possível ter noção...

Imagine a vida sem som... Uma festa sem música... Um filme sem trilha sonora... Não seria impossível, mas para quem já teve a experiência completa, perder parcial ou totalmente a audição seria muito perturbador, principalmente para um músico ou compositor, como retrata o filme “O segredo de Beethoven”.

Não confunda as informações: Uma pessoa surda não percebe os sons que seriam captados pelos seus ouvidos, mas, através do tato, percebe as notas graves e, através delas - o ritmo - que, por ser independente, está presente no esporte, na física, na engenharia... E a música se desdobra sobre os BPM.

Por isso, os surdos podem dançar. Usando o sentido do tato para perceber o ritmo e, através dele, se conectar à música. A vibração da caixa de som, normalmente, voltada para o chão, pode dar a eles a referência que necessitam. Isso é relatado por professores do INES, em Laranjeiras.

Recentemente, uma propaganda do Boticário, apresentou um menino surdo participando do coro da sua escola, traduzindo a música “Stand by me” para a linguagem de libras. O comercial teve um viés mais inclusivo, mas cumpriu o papel de divulgar um pouco deste processo para muitas pessoas.

Os órgãos de tubo, construídos nas igrejas do período Medieval, possuem notas tão graves, que a audição humana não pode alcançar, mas quando tocadas, fazem vibrar os vidros, as estruturas da construção e do peito, que ressoa e através do tato, faz com que os fiéis tenham a sensação da “presença de Deus”.

Apesar das similaridades de audição e tato, que nos aproxima dos outros mamíferos. A elaboração do ritmo e das frequências, formando frases, melodias e harmonia, nos levou a transcender o som e chegar à música. Que através destes sentidos, nos leva às sensações de êxtase, tristeza, alegria, melancolia...

É a forma mais antiga de arte, com linguagem subjetiva, metafórica, passível de interpretações múltiplas e que tem um DNA universal. Diferente das artes visuais, a música, a poesia e os contos, precisam apenas de imaginação, ritmo e som para acontecer. Temos a música presente em nossas vidas, diariamente.

Através da arte, exorcizamos nossos fantasmas, não apenas vendo, ouvindo e sentindo, mas, também, gritando, cantando, pulando e dançando. E o artista é o bicho que faz a arte, como a aranha faz a teia e vive do que tece. 

Disse noutra feita, que o ser humano precisa da arte, quase como uma necessidade fisiológica. E é verdade! Da mesma forma que a vontade, pode se tornar necessidade, principalmente para quem não pode matá-la. Saber que podemos realizar algo, na hora que quisermos, já nos sacia um bocado.

Igual ao menino na porta da lanchonete, que pede um lanche. Muitas vezes, não está passando fome, mas tem vontade e não pode comer um joelho e um refrigerante. E o desejo o impele a correr atrás. Ele não quer quentinha, que mata a fome, nem água que mata a sede... Quer matar a vontade.

É claro que onde há fome e miséria, fica difícil pensar em vontade ou arte. Aldir Blanc e João Bosco, já diziam na música “O ronco da cuíca”: “A cuíca roncou de raiva, roncou de fome. A fome tem que ter raiva pra interromper, a raiva é a fome de interromper. A fome e a raiva é coisa dos home.”

Depois de matar quem estava te matando, você passa a ter vontade de quê? A música “Comida” dos Titãs Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, complementa essa fome, que é de comida, de diversão e de arte. E que a fome é de comer, mas, também de fazer amor. Somos plurais...  

“A gente não quer só comida, a gente quer comida diversão e arte. A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte. A gente não quer só comer, a gente quer comer e quer fazer amor, a gente não quer só comer a gente quer prazer para aliviar a dor.”

E essa dor, citada em todas as línguas e religiões, que nos acompanha há milênios, o que será? De onde vem? Por que habita em nós? É difícil responder, mas é fácil perceber, que a arte é um belo tratamento. Sem contra-indicações.

Com a esperança de que o principal objetivo de todos, neste Carnaval, será a música, musa única e, posteriormente, com o mesmo afinco, se dedicarão à Quaresma, me despeço desejando muita paz, harmonia e pergunto: você tem fome de quê?

Até a próxima!

sábado, 2 de março de 2019

Coluna de Fevereiro de 2019 para o Jornal Portal

Marcos Paiva, meu amigo, compositor de mão cheia, letrou a melodia de um partido alto, do saudoso Wilson Moreira, gravada por Zeca Pagodinho, no disco Boêmio Feliz, de 1989, que no refrão, diz assim: “Vou te contar rapaz, tem malandro enganando demais, no shopping samba o barato está no cartaz...”

Em trinta anos, essa crítica ao samba, pôde ser generalizada à todos os segmentos da vida humana. Entenda: não há nenhum problema com um shopping que tem de tudo, a todo preço. Mas com o que só tem os mesmos “abacaxis”, com preços baseados em seus embrulhos - tenha dó!

Como sempre afirmo aqui na coluna, a humanidade sofre de uma mazela seríssima: tudo virou mercado, desde o pão à medicina. E esta maldição é contaminante. A urgência de um lucro, que justifica qualquer meio, de fato, é responsável por um grande declínio na nossa saúde física e mental, ou qualidade de vida.

Com a arte não é diferente, afinal, ela é parte do mundo que vivemos, feita por pessoas e para pessoas, que sofrem do mesmo mal. Por isso, entrou na dança, tornou-se palatável, se adequou, encaixou e enlatou.

Tornou-se um “café da manhã continental”, sem muitos condimentos ou temperos de costume local, apenas: pão, ovo, salsicha, café, iogurte e mamão. Algo que não representa nada específico de ninguém e de lugar nenhum...

Esta crítica não é feita, apenas, aos que vivem de arte, mas, também, ao gosto, da maioria das pessoas, por ela. Procuram, sempre, algo mais simplório possível, com a desculpa de que precisam se desligar do estresse e, por isso, não querem nada “pesado”, que as obrigue a pensar ou refletir.

O problema já começa aí. Pois, é justamente o que é capaz de nos envolver que pode nos fazer concentrar em outra coisa e mudar o foco. Nos dando a oportunidade de voltar à vida cotidiana, com outras perspectivas e percepções sobre nossos problemas e a forma mais producente de solucioná-los ou lidar com eles.

O status “VIP”, também é uma armadilha: serviços sem valor e custo alto; porcarias de grife, xing ling, de embrulho lindo e logotipo bem grande; combo do cinema, com pipoca de milho transgênico, glutamato monossódico, refrigerante de glicose e preço de iguaria... Tudo, exclusivamente, para todos que pagarem.

Para difundir esses conceitos, aproveitando que os jovens de hoje, praticamente, fazem tudo pela internet, foi criada a publicidade direcionada, que se utiliza dos próprios interesses e histórico de pesquisas do usuário como base, para de forma “espontânea”, impulsionar a engrenagem. É o tal do algoritmo.

É preciso que se entenda, que não basta alguém dizer que alguma coisa “É”, é preciso que ela, de fato, “SEJA”. E, assim, voltarmos a ter a certeza de que não basta que as coisas nos sejam agradáveis, é mais importante e necessário que nos façam bem. O mal que, hoje, nos assola é comparável ao “paladar infantil”.

Nesse caso, devemos saber que nem sempre é possível unir saudável e agradável, mas que o paladar também é formado, ou seja, o que oferecemos às crianças, influencia na formação de seu gosto, fazendo com que se acostumem e gostem de sabores que, a princípio, não agradariam tão facilmente.

O gosto se transforma e isso é comum. Porém, seguindo constatações estatísticas, se investe pesado na produção de “alimentos” e de “arte” com a filosofia do palatável, que facilita sua entrada, propagação e permanência no mercado.

A indústria do entretenimento se farta. Oferecendo, sempre, mais do mesmo, de olho nas “tendências”, criadas ou incentivadas por ela mesma. Ganhando com o ciclo de oferta e demanda, que faz girar com muita propaganda e ideias vazias, difundidas por seus “formadores de opinião”.

Outra coisa que percebo, claramente, é a frequência que, supostamente, deveríamos consumir esta arte “leve e sem contra-indicações”: doses diárias ingeridas com álcool, para matar a tristeza... - Minha gente! Qual o efeito de um cafezinho, em alguém que toma muitos, todos os dias?

Para sentir efeito, é preciso uma pausa. É preciso tempo. De nos permitirmos dar um tempo. Não fazer nada. Não escutar nada. Ouvir o silêncio e, dele, nossos pensamentos. Observando a natureza... Como disse Caetano Veloso, sobre o que sua mãe, Dona Canô, mais gostava de fazer - contemplar a existência!

Daí, com certeza podem vir as soluções. E não do ritmo frenético ao qual nos habituamos a viver. Se há o lado bom, na velocidade em que poderíamos resolver problemas, há o lado ruim, da quantidade em que se multiplicam. Não se trata de uma crítica vazia à indústria, mas à maneira vazia de usá-la.

Apesar disso tudo, na primeira oportunidade que têm, as vítimas se utilizam dos mesmos pensamentos, argumentos e truques, para, também, poder dar uma mordida e aproveitar enquanto é tempo, afinal, carpe diem!

Se não prestarmos atenção e descermos do salto de evoluídos e sofisticados, cairemos por terra, pois, em declínio já estamos há tempos. Viver como se não houvesse amanhã é não fazer nada de que possamos nos arrepender e, não, comer, beber e consumir insaciavelmente...

É aproveitar o que a vida nos oferece, saber aceitar as coisas boas e ruins, não perder tempo com mesquinharias, usar o livre arbítrio para escolher ficar em paz, sintonizado em boas frequências. Afinal, se cada um dá o que tem, só poderemos emanar boas vibrações, se vibrarmos da mesma forma.

Até a próxima! Muita luz e paz!

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Coluna de Janeiro de 2019 para o Jornal Portal

Durante toda a adolescência, cumpri, fielmente, um ritual: chegar da escola, almoçar, colocar um LP para tocar e fazer uma sesta. Aos poucos, fui descobrindo que absorvemos as músicas de forma inconsciente, como se fosse por osmose.

Essa capacidade, vai tornando-se um tipo de programação, cria em nós uma tendência a gostar do que é mais familiar, uma predisposição ao que conseguimos prever e presumimos ter controle, reafirmando as certezas que já temos.

Por isso, também, acaba sendo uma barreira, um filtro, para coisas diferentes, que desvia nossa atenção, levando até, ao sono. E a taxar o novo de chato, sem graça ou sem nexo. Seria um resquício tribal de um esforço para ser aceito pelo grupo, negando inicialmente, a tudo que não reflete seus valores e tradições?

Daí, surge a procura por mais do mesmo. Uns ouvem cada vez mais música boa, outros pagam, cada vez mais caro, para ouvir a ruim. Algumas situações, porém, nos fazem deparar com o diferente e por curiosidade ou necessidade, nos atirar em mares nunca dantes navegados, dos quais acabamos por gostar.

Toda música, um dia, foi inédita. Mas, ao saber de alguma, que só nós não conhecíamos, nos aflige uma sensação de enorme perda de tempo: como nunca tivemos notícia de que existia? Mas vivemos em inércia. Segundo os físicos, um estado natural de tudo que existe, inclusive de nossa psique e comportamento.

É importante ter consciência deste aspecto da nossa natureza, para sermos vigilantes, não permitindo que outros assumam o leme de nossos ouvidos ou vidas. Não podemos ser escravos de outras vontades, mas, também, não devemos sucumbir a nossa própria ignorância e estar acomodado nessa condição.

Estar com o leme nas mãos, não significa ter controle sobre nada, a não ser, sobre nós mesmos. Agir segundo nosso livre arbítrio não fará a viagem mais calma ou as coisas, mais fáceis. Apenas nos dará a certeza de que ninguém está vivendo por nós, afinal, apesar de o mercado ditar o ritmo e as regras, somente, cada indivíduo pode saber, de verdade, o que cala e o que fala em seu íntimo.

Existe uma praxe de “resignificar” ideias e palavras, através de um mundo paralelo que distorce a realidade, atribui valores, aponta condutas, une água e óleo, na busca de criar uma falsa sensação de satisfação, condicionada ao consumo.

Como um senado que distorce a constituição e coloca o legal acima do moral. Haveria brechas na lei da gravidade terrestre? Ou perante ela, toda humanidade tem apenas uma experiência? Apesar da aparente normalidade, devemos perceber que qualquer condição que não abrange a todos é, sempre, questionável.

O marketing usa o processo subconsciente de aprendizagem, a capacidade de adaptação humana (ao luxo e ao lixo) e a tendência à inércia, como suas bases, estimulando o crescimento desse desmedido consumo supérfluo. Porém, podemos nos apropriar desse conhecimento e usá-lo para entender nossos dramas.

Vivemos numa cultura de muita pressão, paga com recompensas vazias que acabam por nos descolar da realidade. “Eu também sou filho de Deus, eu mereço”. Temos que olhar para os lados e procurar enxergar as armadilhas e venenos que nos são vendidos como poção mágica, antídoto ou remédio urgente.

Muitas vezes, agimos como viciados, de tão mal acostumados que passamos a ser. O refrigerante que era tomado nas datas comemorativas, quatro vezes ao ano, aniversário, Natal, etc, passou aos finais de semana e, depois, a toda refeição. Passou a ser um hábito, um mau hábito. Como o álcool e as drogas.

Não é preciso ser músico, para gostar de música, nem pintor, para gostar de quadros. Mas, é preciso tirar os óculos (que criamos) e nos fazem enxergar em preto e branco e compreender que a natureza tem muitas cores. E, não é razoável, aceitarmos ser monocromáticos, quando há tanta diversidade.

A programação cultural das cidades, rádios e televisão, aberta ou a cabo é muito rasa e limitada ao que vende. A cultura não é fomentada, pois não é considerada investimento. Até, nossas instituições públicas, patrocinam quem já não precisa... Sempre os mesmos, por todos os lados, canais e frequências...

Deveríamos ter mais opções e espaço. Cada pessoa tem um gosto único, que ainda mudará durante as fases da vida, por isso, carece de diferentes estímulos, em diferentes épocas. É uma demanda variada e natural, uma necessidade física e mental. Precisamos da arte, como do ar e, o artista, de fazê-la.
Para ter um gosto apurado, é preciso ter experiência. Experimentar, conhecer e viver. Ouvir música Clássica, Pop, Rock, Reggae, Samba... Desconfiar do que é oferecido de bandeja e, também, do que se diz alternativo ou contracultura.

Duvidando de tudo, como Descartes, só não duvidaremos de que duvidamos. Se duvidamos, pensamos e, se pensamos, logo, existimos. Liberdade é a escolha do caminho - quando possível - e da forma como vamos reagir ao que não escolhemos. Diante das pedras, lamentar ou usá-las de degrau para transcender?

Desejo a todos um feliz ano novo, com muita saúde, paz e ótimas escolhas!

Até a próxima!