terça-feira, 3 de setembro de 2019

Coluna de Agosto de 2019 para o Jornal Portal

Às vezes, pensamos em desistir. Largar a tudo que temos nos dedicado e deixar que o mundo e, principalmente, os humanos que o habitam, se explodam. É difícil viver, sem ver reconhecido nosso esforço, nossa dedicação e, mais ainda, nossa abnegação, já que a maior parte do trabalho de um artista é invisível.

A arte exige que estejamos disponíveis vinte e quatro horas do dia, sete dias da semana, trinta dias do mês, doze meses do ano... Quanto mais disponíveis, mais conseguimos transmiti-la e mais somos instrumento, através do qual ela se manifesta. Grandes artistas dedicam-se integralmente.

Perceba que no início da carreira, a maioria dos artistas, tem bastante volume e conteúdo, no entanto, com o passar do tempo, essa pujança diminui bastante e ele passa a viver uma inspiração mais escassa. É óbvio que existe uma diferença hormonal considerável entre a juventude e a vida adulta, que atenua a energia, mas que, normalmente, é recompensada com maturidade.

O sucesso, apesar de ser um reconhecimento, pode levar o artista para longe de si, fazendo-o perder a conexão. Não é difícil imaginar o quanto de empenho, antes dedicado ao trabalho, passam a demandar as festas, comemorações, divulgações, recepções e eventos, onde sua presença se torna obrigatória.

Não quero dizer que sua vida deva ser de clausura e celibato, mas que é preciso saber equilibrar os deveres entre o mundo profano e o seu sacro ofício. Avaliar, por exemplo, se a entrega de um prêmio é, de fato, tão importante, que justifica sua ausência numa festa de família ou festejo tradicional em sua cidade natal.

Afinal, tudo que o conecta às raízes, pode ser de suma importância para que se mantenham abertas as portas e seu fluxo de troca com a fonte. Hoje, a conduta profissional justifica ações de ética discutível e confunde, principalmente na cabeça dos mais jovens, a dedicação ao ofício, com a dedicação à fama.

Devemos ter entre nossas referências, artistas que souberam ser grandes em todos os sentidos, para podermos nos espelhar e usá-los como parâmetro. Pois não há legado na arte vazia, nem vida vazia para quem se entende tendo nas mãos uma missão. Somente esse compromisso pode tornar uma obra imortal.

Da reflexão sobre ela, vem a herança e os melhores conselhos. Mais do que querer deixar um nome para a posteridade, mostrar um propósito para a humanidade que habitará o planeta. Apesar da distância física, social, cultural, temporal e de linguagem ou qualquer outro obstáculo que possa haver.

Essa semana, tive aula com o Maestro Jobim, sobre sua introdução ao “Samba do avião” em intervalos de quartas. Lembrei que ele havia gravado uma outra música com uma abordagem semelhante, um baião de João do Vale chamado “Pé do lajeiro” e fomos estudar:

Em Mi bemol, com quadratura irregular, essa gravação de 1981, mexeu muito comigo, uma frase profunda feita nesses tais intervalos, flertando com o politonalismo, fritou meu cérebro. Descobri que o arranjo era de João Donato.

Semana passada a aula foi com Jota Moraes, através do seu arranjo para “Lindo, lago do amor” de Gonzaguinha. Como pode uma música tão simples e pequena, ter tanto pra se ensinar de harmonia? Aulas intensas:

Três mortos e dois vivos, que nunca pude conhecer, conversar ou sequer estar perto. Mas que me deram a oportunidade de aprender através de sua obra, me deixando muito agradecido e próximo a eles, como se tivessem se tornado, de fato, velhos conhecidos. Que saíram de dentro de um disco para me ajudar.

E as aulas não param por aí, nem se limitam apenas a música, às vezes, chego a confundi-las. A aula onde Chico César recitou o verso de “Beradêro”: “A cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire”. Seria de poesia ou de sociologia?

Candeia, em Moral e Cívica, nos ensinou: “Quem não lutar pra conquistar o que sonhou/ fazer por merecer/ se iluminar na luz que há no vencedor/ pode até ganhar/ e méritos não ter/ Aquecer os seus ideais em muito amor/ com o poder nas mãos não brincar/ o arvoredo do mal derrubar/ e arrancá-lo bem na raiz/ Sua vida no bem sublimar/ pra ajudar a erguer o pilar/ de um mundo bem mais feliz”.

Muito antes do ensino à distância, esses mestres já ensinavam através da arte. Muitos viveram em grande dificuldade, tendo que fazer, das frustrações, combustível. Obcecados por deixar um legado, muitas vezes, até, sem reconhecimento em vida, mantiveram-se fieis às suas ideias. Apesar de não pedirem nada em troca, só pelo fato de nos motivarem a seguir, também nos fazem motivar muitos outros, num ciclo virtuoso que mantém acesa a chama.

Mais importante que desvendar os mistérios do mundo, é ouvir o chamado destes homens, que também ouviram o chamado e sentiram-se comprometidos a perpetuar a história. Mesmo sem ter nada a favor, sempre que tiveram oportunidade, desistiram de desistir. Por eles, sigamos singrando!

Até a próxima!

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