quinta-feira, 19 de abril de 2018

Coluna de Abril de 2018 para o Jornal Portal

Numa noite de domingo, chegando com a família de uma roda de samba em que toquei, ouvimos, ao saltar do carro, um miado, fininho, vindo de dentro da garagem. Procuramos um pouco, até chegarmos a uma caminhonete, que trazia em suas entranhas um filhotinho cinzento de gato.
Ele chamava pela mãe e não vinha, até nós, de jeito nenhum. Estava entre a caçamba e o chassis, quando tentávamos pegá-lo, ele fugia. Se equilibrava muito bem. Andando rápido entre as peças da suspensão e outras que ficam por baixo do carro. Montamos um verdadeiro esquema de salvamento, e nada.
No dia seguinte, minha filha voltou ao local, junto com outras crianças do prédio e conseguiram resgatar o bichano. Como prêmio, pela bravura ou pela sujeira da roupa e dos joelhos, ela foi agraciada, pelo dono do carro, com o pequeno felino. Que havia viajado, naquelas condições, de seu sítio em Araruama até o Grajaú.
Como o bichinho não parava de miar, o apelidamos de Tagarela. Quando criança, eu havia tido um siamês, chamado Príncipe. Agora, há cinco meses, voltei a conviver com esse animal fantástico. Quando chegou era tão pequeno que ainda andava desengonçado, mas, hoje, é um ninja disfarçado de vira-latas.
Essa sagacidade e curiosidade que o levam a, literalmente, subir pelas paredes ou entrar num sofá que não tem entrada, entre outras peripécias, me levaram a traçar mais um paralelo, agora entre gatos e gênios. Vivo procurando a melhor analogia, para quando começa aquela discussão sobre o “dom” - the gift.
Todo gato é ninja. Uns mais, outros menos, alguns perderam o condicionamento por causa das condições em que vivem. São produtos do meio, como Vygotsky gostaria que eu afirmasse. Porém, há um aparato genético que lhes dá a condição de ser ninja - a todos - como nos diria Piaget. As exceções existem, claro: Problemas genéticos, congênitos ou de enfermidades, durante a vida.
O gênio, quando nasce, é uma criança normal, um livro em branco. Cheio de potencialidades, como todos nós. A diferença, é que ele, em especial, entra em contato, muito precocemente, com algo que tem muita afinidade, gerando um circulo virtuoso de interesse, crescimento e saciedade, que chamamos de dom.
O dom, essa facilidade perceptiva e/ou motora, fruto daquela afinidade que se desenvolve e amadurece, faz com que este indivíduo esteja em franco contato com seu instinto, numa espiral constante de ascensão, enquanto viver ou lhe for permitido, assim como a fauna na natureza. Se incentivada, esta criança pode, até, sobrepujar tudo o que estamos habituados a ver.
À soma das condições biológicas e contextuais de sua época, cultura e família, dá-se o nome de vocação. É ela que permite ao gênio, apesar de toda facilidade e inclinação para o assunto, sentir-se profundamente feliz e, também, ansioso para frequentar a esperada aula, às sete da manhã de um domingo chuvoso.
A menina prodígio, Alma Deutscher, desde pequena se interessa pela música, pede ao pai que a ensine, estuda sem que ninguém peça, movida, apenas, pela sua própria vontade, algo que vem de dentro. É a sua brincadeira preferida, onde transborda realização, afeto e felicidade.
A linda inglesinha que, em Fevereiro, acabou de fazer 13 anos, toca piano desde os três e violino desde os quatro, compõe sinfonias, óperas e se apresenta em concertos profissionais. Apesar de ser considerada a reencarnação de Mozart, diz: “Eu não quero ser um segundo Mozart, quero ser a primeira Alma.”
Ela tem razão! Seria uma injustiça com o quanto ela estuda e trabalha, dizer que ela é boa porque nasceu com um dom ou porque é reencarnação de alguém. Essa visão que nos rodeia, é reducionista demais e tira o mérito de quem, apesar de ter vocação, não optou por gozar, sem antes trabalhar para merecer.
Apesar de conseguir fazer qualquer coisa, pois, o ser humano é capaz e, também, programado para aprender, não ter a sensação de realização, tem sido uma das grandes frustrações da atualidade. Uns tendem à música, outros à natação ou história e, assim, cada um deveria se perceber parte de uma função.
Nossa busca deve ser por esta sintonia. E, para isso, precisamos ouvir nossos verdadeiros desejos e respeitá-los, independente do que, socialmente, é encorajado. Antes, teríamos que ter um desempenho acima da média, para sobreviver à natureza, hoje, vivendo em sociedade, permanecemos na angústia de sobreviver, mas, a outros de nós e a nós mesmos.
Como disse o sábio Cherokee: “Todos temos, no peito, dois lobos, o que alimentamos com mais frequência, é o que se torna mais forte.”
Espero que todos tenham tido uma boa Páscoa!
Até a próxima!

Coluna de Março de 2018 para o Jornal Portal

A letra é uma extensão da própria música e faz um elo importante entre as subjetivas linguagens do som e das palavras. Apesar de concordar que muitas músicas são melhores sem letra, percebo que outras prendem mais pela mensagem de sua letra, do que, propriamente, pela música.
Bob Marley, era um artista que usava a música como veículo de suas mensagens. Mesmo tendo criado o Reggae, usava-o apenas como uma forma de fazer aquelas ideias invadirem de maneira subliminar o cotidiano das pessoas, pílulas diárias de cidadania: “Emancipe-se da escravidão mental, ninguém além de nós mesmos pode libertar nossas mentes” é o que diz na linda “Redemption Song”.
Não existe uma verdade absoluta sobre a qualidade de uma letra, mas uma necessidade dela possuir identidade, ser autêntica no que diz e na maneira de dizer. Os rótulos são formas de facilitar determinadas explicações, desde que se entenda que eles não definem, realmente, nada.
Não é porque um gênero tem mais adeptos em camadas populares que sua letra é ruim, nem o contrário. Podemos refletir mais ouvindo letras de Rap dos Racionais e de sambas do Paulinho da Viola, do que de muitos pseudo-artistas da “elite”, que dominam a língua e não têm nada de relevante ou de novo a dizer.
Um fato notório é a superioridade que os letristas brasileiros têm sobre os estrangeiros: quantas vezes, ao traduzir músicas como “Tutifrutti” ou “Ticket to ride”, percebi o quanto eram bobas e infantis. Mas que, por serem Rock, tinham uma espécie de permissão para isso. Aqui no Brasil, apesar da dedicação de alguns “artistas”, para tentar tornar nossas letras de Rock bobas, sempre teremos Renato Russo e Cazuza, metendo o dedo nas feridas... 
Letra pobre, nada tem a ver com o fato de ser simples. Temos que aprender a separar esses dois adjetivos. O simples contém verdade, mesmo que seja apenas um novo jeito de se dizer algo já conhecido. Um exemplo de simplicidade e genialidade, para não ser injusto com os estrangeiros, Lennon e McCartney, é “Hello, Goodbye”.   
Existe, ainda, um terceiro adjetivo, que advém dessa relação entre simples e pobre, que é: PODRE. Uma letra de alguém que tenta se fazer de simples usando linguagem pobre, com o objetivo de atingir o povão... Não por falta de conhecimento, mas de escrúpulo. Errando por querer, usando termos chulos, trocadilhos, humor de baixo nível, com o único propósito de ser palatável e vender.
Marchinhas de Carnaval, podem errar na dose, mas também podem ter letras muito boas. Isso depende da perspicácia do letrista em sacar o assunto a ser dito, sua capacidade de síntese, o enfoque (ponto de vista) que vai dar a ela e a musicalidade das palavras. Tudo isso é importante. Por isso, letra é diferente de poesia.
Na poesia, as palavras, frases e entrelinhas tem que se somar para trazer à luz o clima que o poeta quer. Na letra, a música já traz clima e entrelinhas, fazendo com que ela possa ser bem menos presa, embora a preocupação com sonoridade, tamanho e acentuação sejam maiores, já que as sílabas são restritas à quantidade de notas da frase e a prosódia tenha que ser a mesma da melodia.
Vinícius de Moraes era um craque nos dois campos. Conseguia, com brilhantismo, ser, nitidamente distinto, com muito mais rigor na poesia do que nas letras. E, ainda assim, era muito criticado pelos acadêmicos e intelectuais, de sua época. Não por ser gênio e fazer divinamente os dois, mas por se permitir “descer” ao popular.
O que é uma boa letra? Não existe unanimidade sobre isso. Os critérios do gosto são subjetivos. Tem a ver com as lembranças, as vivências, experiências e memórias que são evocadas por ela, pelo ritmo, melodia ou harmonia.
Assim como uma mesma música pode ser ouvida, dançada, coreografada, servir de trilha para teatro ou cinema, uma letra pode ter diversas interpretações e casar com várias situações diferentes. Não importa a verdadeira intenção do músico ou do letrista, o que importa é o que cada uma faz com o cutucão que recebe.
A arte nos faz questionar, pensar, refletir, sorrir, chorar, sentir muitas coisas, que nos provocam, nos incomodam, nos confortam e nos ajudam a entrar em contato com o mais profundo de nós. Pode nos ajudar a voltar aos trilhos, a respirar, recomeçar, ficar em sintonia. Mas sempre através do questionamento.
Quando ela passa a ser um espelho que apenas reflete o que já somos ou já fizemos e não nos dá perspectiva de nos colocarmos em novas situações ou circunstâncias inusitadas, será que ainda poderia ser chamada de arte? Ou seria apenas entretenimento?
A arte que você consome é condescendente ou te faz pensar?
Agora que o ano “começou”, vamos com tudo!!!
Até a próxima!