terça-feira, 21 de julho de 2020

Coluna de Agosto de 2020 para o Jornal Portal.

Na última coluna, comentei que a música mecânica, tocada por caixinhas de música, realejos e pianolas, programados por cartões perfurados ou cilindros de metal com alto-relevo, são máquinas que baseiam-se no fato da música ser formada por padrões. Sejam eles musicais, culturais ou mecânicos - os clichês.

Esse termo pode ter a conotação pejorativa de "lugar comum", algo feito sem esmero, apelativo. Mas, para os instrumentistas, significa que se pode tocar diversas músicas, numa mesma vida, sem ter que começar do zero a cada nova peça.

É como o acúmulo de experiências, passado de geração em geração, que permite que se tenha certeza de como as coisas funcionam para, sobre essas bases, poder dar saltos qualitativos e avançar. Sem os retrabalhos, que são tão contra producentes.

É interessante e perturbador perceber o quanto carregamos de programação cultural, química, física e biológica. Desde o DNA, que não escrevemos, atè este modo de perpetuar conhecimento, através de livros ou de linhas de programação. E quanto nosso inconsciente é presente em nossos pensamentos e ações...

O avanço tecnológico, tão veloz, causa hiatos na compreensão. Muitas vezes, não se sabe como se chegou a determinadas práticas e o choque entre gerações, que usaram muito algumas delas, com outras, que as desconhecem completamente, além de curioso, pode virar dilema e, assim, motes artísticos.

No filme de 2011, “A invenção de Hugo Cabret”, a história se desenrola em torno de um boneco autômato, programado para desenhar. Os espectadores, apesar de íntimos dos “Apps”, viam a máquina, precursora mecânica da programação eletrônica e digital que, hoje, nos cerca, como ficção.

A rotina do uso das tecnologias, somadas aos carros, trens e aviões do cotidiano, banaliza, em nossa mente, o entendimento da realidade que vivemos. Só quando comparada a tempos passados, às vezes mais longínquos, às vezes, mais próximos, consegue se ver as enormes transformações.

Fazendo uso dos referidos padrões, Bobby McFerrin, lançou em 1988, a canção “Don’t worry be happy”. Além de usar clichês rítmicos, melódicos e harmônicos em sua composição, também aproveitou os pequenos ciclos, de quatro compassos quaternários e resolveu gravá-la sozinho e “à Capella”.

Naquela época, já era possível um mesmo músico gravar vários instrumentos, em canais independentes, sobrepondo-os uns aos outros e conseguindo um resultado sonoro de banda ou orquestra - o famoso “overdub”.

Como exemplo, no ano anterior, 1987, Paul McCartney havia lançado um compacto, com a música “Once upon a long ago”, que foi gravada, praticamente, toda por ele. Que compôs, concebeu arranjo e tocou a maioria dos instrumentos: bateria, baixo, guitarra, piano...

Um outro bom exemplo, este já bem mais recente, é do músico Christopher Bill, que fez uma versão à várias vozes de trombone, da música “Happy” de Pharrell Williams. No vídeo, podemos vê-lo e ouvi-lo executando enquanto gravava os loops.

Já a expressão “à Capella”, quer dizer que o único instrumento usado é a voz. E isso nos remete a um coral, onde todos os componentes estão cantando. No mínimo, fazendo um fundo melódico, com linhas mais passivas que fazem uma cama ou uma cortina para a melodia principal.

Muitos grupos vocais, principalmente, com influência e experiência Gospel, como o “Take 6”, acabaram se especializando em arranjos desse tipo. Outros, usam “à Capella” em partes específicas de uma música ou como um dos tipos de arranjo vocal, entre outros, que executam.

No caso, Bobby McFerrin fez vozes e instrumentos com a boca: três linhas de guitarra, para formar acordes de três notas, baixo, percussão, assovio, coro, contra-canto, cacos e efeitos, além, é claro, da voz principal. Ouça com atenção! É impressionante até hoje!

Hoje, vários grupos vocais têm integrantes que imitam o som de instrumentos, como o “BR 06”. E o Brasil, apesar de não ter uma cultura de educação musical forte, pública, para idade escolar, tem um número expressivo de grupos vocais e, até, reconhecidos fora do país. Este assunto merece uma outra coluna.

Outra coisa que chama atenção na carreira de McFerrin, é a maneira que encontrou de fazer suas apresentações ao vivo, já que, na época, não existiam os equipamentos de “loop”, capazes de armazenar, repetir e tocar, de forma instantânea, diversas camadas de gravação simultâneas.

Na internet existem muitos vídeos que mostram como sua relação com o público se transformou. Sempre muito carismático, estimulando a participação de seus espectadores, aos poucos, deixou a posição de destaque, de centro do espetáculo e colocou "todo o público no palco". A interação é arrebatadora...

Com apenas um microfone, entra em cena e faz os espectadores participarem do show. Na Ave Maria de Gounod, melodia feita quase dois séculos depois, sobre o Preludio nº1 de Bach. Bobby, sozinho, canta o acompanhamento, que é o prelúdio e o público em uníssono, canta o tema... Incrível!

Um outro vídeo, mostra sua participação no "World Science Festival - 2009 - Neurons and notes", uma convenção de neurociência, onde ele exemplifica o assunto sobre expectativas, demonstrando a força da escala pentatônica, com a ajuda da plateia.

Por essa maneira incomum de pensar, fazer e compartilhar sua música, considero esse cara um gênio. Entendo que não é possível evoluir sem a compreensão de que é preciso participantes e, não, consumidores.

Trazê-los para perto, convidá-los a vivenciar, formar músicos e, também, ouvintes, é a forma mais simples e humana, de escapar do abismo. Como disse Vinicius de Moraes: "Pra que multiplicar se podemos dividir?" Rememos juntos! 


Até a próxima!

terça-feira, 7 de julho de 2020

Coluna de Julho de 2020 para o Jornal Portal

Estes dias, recebi um vídeo de um músico tocando um serrote. Sim. Destes que temos em casa para consertar as coisas. Era tocado com um arco, como o de um violino. Quero ver o que meu pai vai dizer agora... Ele que sempre me disse que conserto de serrote, era com “S” e concerto de cravo, era com “C”.

Na época da faculdade, no instituto de psicologia da UFRJ, na Praia Vermelha, vi algumas vezes, um amolador de facas, tocando músicas enquanto afiava algo no esmeril. Apesar do serviço ser comum em vários bairros, nunca tinha visto alguém tirar sons tão bem definidos, a ponto de se reconhecer uma melodia.

Para quem não sabe sobre o que falo, trata-se de uma roda de ferro, que parece um monociclo, ligado a um disco de amolar, acionado por pedal, cujo “sobe e desce” se transforma em movimento circular. Empurrando a geringonça, os homens faziam sua propaganda no grito, avisando que amolavam facas e afins. 

Essa maneira inusitada de se tirar som das coisas, me faz recordar o que dizem os grandes mestres: a música está na nossa cabeça. O instrumento é apenas uma ferramenta com a qual aprendemos a expressar, em diversos níveis técnicos, o que já existe dentro de nós.

Hermeto Pascoal faz som com vários objetos. Lembro de vê-lo, no programa do Jô Soares, tocando diversos patinhos de borracha que, quando apertados, apitavam. No mesmo programa, ele mostrou uma montagem com diversas sílabas tiradas da fala do apresentador que, juntas, formavam uma melodia.

É muito excitante quando alguém nos surpreende! Uma ideia fora do comum nos faz viajar e entender que os instrumentos de hoje, um dia, foram invenções. Da mesma forma que, as invenções de amanhã, serão baseadas em algo que já existe. E deste “diálogo” surge o aprimoramento e a evolução.

O artista de rua que toca Habanera em diversos copos de água, tem mérito no repertório, no instrumento e na surpresa que nos causa. Afinal, tudo isso é arte: a originalidade, a interpretação, a criação, a maneira de se apresentar, o instrumento usado e o efeito causado no espectador.

Mas, se ele baseou-se no xilofone, esta originalidade poderia ser contestada, pelo simples fato de nada ser, realmente, novo? Ou o fato de juntar as coisas naquele contexto, conta? Penso que existe arte, mesmo na forma de se refazer as coisas e que, pessoas diferentes possam chegar a ideias semelhantes, sem saberem, previamente, sobre o trabalho umas das outras.

Entretanto, já vi alguns “gênios” serem enaltecidos, por criarem seus próprios instrumentos, feitos de canos de PVC. Será que tiveram o insight “do nada” e  que nunca ouviram falar no UAKTI, grupo de Marco Antônio Guimarães, surgido na UFBA, que faz isso desde 1978? O baiano Gilberto Gil diria: procurem saber!

Intrigas à parte, existe muita similaridade entre as buscas musicais. E, mesmo havendo muitos instrumentos, as maneiras de se obter o som não variam muito. A harpa deriva da lira. O cravo é uma harpa tocada por pinças, acionadas por teclas, dispostas de forma a facilitar a visualização e o acesso. 

Seguindo, chegamos ao piano, que é um cravo tocado com pequenos martelos no lugar das pinças. Depois, ao piano elétrico e ao teclado, que já não têm cordas, mas sintetizam sons, buscando simular em nossos ouvidos e cérebro, os sons dos instrumentos acústicos e nos provocar experiências reais.

Assim, as teclas, que já formavam a interface que unia instrumentos de mecânica bem diferentes, como o órgão, que é feito de tubos que regulam a passagem do ar, e o piano, que é uma harpa encaixotada, tornam-se, em seu coletivo - o teclado - a ferramenta ou a ideia, mais usada no ambiente digital. Desassociado do piano, é a chave de entrada, para se tocar vários sons.

Creio que seu ápice seja o Seaboard, que além de todas as vantagens de visualização das notas e facilidade de acesso e simultaneidade das teclas, consegue ganhar enorme dimensão expressiva, chegando próximo aos sopros e às cordas. Vejam o que é! Procurem no oráculo...

No ambiente virtual, existem aplicativos para celular, que ajudam a aprender teoria, treinar percepção, conhecer letras e cifras de música, tocar e, até mesmo, compor. Um leigo pode criar músicas, a partir de ciclos rítmicos, melódicos e harmônicos. E, acredite, isso é mais velho que os DJ’s e a música eletrônica. 

A ideia de que a música pode ser programada é bem antiga. Baseia-se no fato de que, ao se aprender música, estudamos padrões. Sejam musicais, culturais ou mecânicos, percebemos que a música folclórica está cheias de clichês e - entenda - isso não é ruim. Pois nos permite “reconhecer” uma música inédita.

Antigamente, a programação era mecânica. As caixinhas de música, realejos, pianolas, que são aqueles pianos “fantasmas” que tocam sozinhos, são frutos da programação feita em papel perfurado ou metal em alto-relevo e de uma engrenagem movida a corda, motor ou eletricidade, que o fazia funcionar.

A ideia de se buscar novos instrumentos, tocando-os como antigos, de voltar aos instrumentos antigos, abandonando os novos; de buscar música nova, através de padrões ou de tentar quebrá-los, buscando algo novo em folha; de misturar tudo isso ou querer que tudo esteja, devidamente, rotulado e separado; faz parte de nossa, intrínseca, inquietude. A busca nos mantém ávidos e vivos!


Como diria o sábio Buzz Lightyear - “ao infinito e além!” - Até a próxima!