Obviamente, nos dias de hoje, com tanta informação, é difícil ficarmos tanto tempo na ignorância, bastando apenas um “Google” para ter na palma da mão a resposta, trazida pelo oráculo. No entanto, numa época não tão distante, podia se passar a vida nas trevas, caso não se tivesse acesso a encartes de discos.
Cantei “Alegre menina”, de Jorge Amado e Dori Caymmi, por muito tempo: “Por que fizeste isso tão de mim, alegre menina”, até uma testemunha ocular do encarte do disco, me dizer: “Tem gente que não sabe que a música começa com o pai, perguntando ao sultão, que levou sua filha como esposa: O que fizeste, sultão, de minha alegre menina”. No que respondi: “Eu, por exemplo”...
O mais curioso é que, muitas vezes, o português não faz nenhum sentido, mas por falta de alguma palavra ou expressão que nos traga alternativa cabível, ficamos sem saída. E a letra sem nexo vai permanecendo no lugar da correta.
Neologismos, muitas vezes são herméticos. “Avohai”, de Zé Ramalho, que nos remete ao nome de um personagem, décadas depois, revelou ser “avô e pai”. Nela ainda ouvi: “Neblina tu vai brilhando” que só depois soube ser: “Neblina turva e brilhante” - nesse caso, os acentos de música e letra estão descasados.
Não podemos esquecer das pequenas trocas de palavras que se equivalem, mas não constituem erros tão crassos, afinal não somos computadores para decorar absolutamente tudo. O pior, com certeza, são os erros de interpretação.
“Bandolins” de Osvaldo Montenegro, chegou a ter, pronta, uma equipe de gravação para um clipe, no Tivoli Parque da Lagoa. Mas quando o diretor do Fantástico foi questionado sobre a locação, respondeu: “Como fosse um parque” e teve que ouvir que a letra era: “Como fosse um par, que nessa valsa triste...”
Mesmo que a letra esteja correta, existem mil maneiras de se interpretá-la, podendo ser interessante saber suas histórias, mas também muito frustrante.
“Manuel, o audaz” é uma música
feita para o Jipe do Toninho Horta, que despencou ladeira a baixo.
“Diana”, dos mesmos parceiros, foi feita para a cadelinha de Fernando
Brant, que havia morrido.
“Apesar de você”, de Chico Buarque, foi feita para o Médici? Geni era uma prostituta ou um travesti? Aquela canção de amor do Fred Mercury falava sobre Mary, sua esposa ou sobre Paul, seu namorado? Importaria saber? Ou o que vale é o quanto nos toca, por razões que nem mesmo entendemos?
Nossa experiência, sempre será nossa maior referência para entender o mundo e, quase sempre, diferente da dos outros. Dela surge nossa interpretação que influenciará outras experiências e interpretações, criando um ciclo infinito...
Na música, “Back in Bahia” de Gilberto Gil, eu ouvia: “Lá em Londres, vez em quando, me sentia longe daqui.... Nervoso querendo ouvir Celly Campello, pra não cair/ Naquela fossa/ Em que via um camarada meu de corpo belo cair...”
Essa letra não faz sentido? Mas, está incorreta. Pela falta de encarte e internet, durante muitos anos, cantei errado. Eu, simplesmente, inventei o “corpo belo”, que na verdade é “Portobello” - Observe, que a interpretação da minha versão é até mais profunda - que presunção! - e sugere uma condição depressiva na qual, mesmo um camarada bonito e malhado, poderia estar vivendo no exílio...
Mesmo que a música seja, muitas vezes, bem mais simples e direta, sua interpretação é livre, incontrolável e natural. Acontecendo à parte de permissões e vontades, torna-se manifestação abstrata de nossa liberdade e livre arbítrio.
Apesar de dizerem que tudo está relacionado, já aconteceu de atribuírem algumas músicas que fiz, à motivos que não tinham a menor relação, por isso, é preciso ter cuidado ao afirmar que uma letra, refere-se a isso, àquilo ou a um fato real. E, caso não tenha a chancela do autor, é preciso sublinhar que aquela interpretação é, apenas, uma possibilidade, que fez algum sentido.
Já tive notícias de um festival, onde o apresentador contou uma história triste sobre a canção que seria executada a seguir, dizendo que era muito difícil para o cantor, pois era sobre a perda de sua esposa etc. Muito sem graça, o compositor subiu ao palco, desmentiu o boato e tocou a música...
Salve a idiossincrasia! Até a próxima!
