Por vezes, disse, aqui na coluna, que há arte, até mesmo na maneira de se refazer ou repetir alguma coisa. É fato. Desde que haja verdade no que se diz ou na maneira de se dizer, é possível mudar sua forma, baseando-se no original.
A adaptação é uma atualização e torna o pensamento de outras épocas, mais próximo do nosso, para que as situações sejam mais inteligíveis, permitindo empatia e comunicação entre gerações distantes.
Não se trata, necessariamente, do objetivo fútil de repaginar a embalagem de um produto, que permanece o mesmo, apenas para atiçar a curiosidade do consumidor. Apesar desta ser uma estratégia muito usada atualmente, a arte é bem mais do que isso.
O grande químico Lavoisier, cunhou a célebre expressão: ”Na vida nada se cria e nada se perde, tudo se transforma.” E Eclesiastes, um pequeno livro do velho testamento, que vale a pena ler, nos adverte: “Debaixo do sol não há nada novo.”
Assim, apesar de saber que é possível apenas se copiar, percebemos que através de um olhar artístico, é possível se adaptar, transformar e transcender, somando mais criatividade, fantasia, emoção e surpresa à ideia original, óbvia ou conhecida.
Um exemplo, é o conto “Os músicos de Bremen”, de 1812, dos irmãos Grimm, no qual um burro, um cachorro, um gato e um galo, fogem dos maus tratos de seus donos, formando uma orquestra e pelo caminho, param para pedir comida e abrigo numa casa, onde estão escondidos ladrões, com muitos pertences roubados. Os amigos, juntos, enfrentam os bandidos e devolvem o tesouro, tornando-se heróis.
Além do conto, ouvi esta história narrada em verso e cantada, na adaptação feita pela coleção Disquinho, com o título: “Os quatro heróis”. Estes vinis coloridos, foram muito conhecidos e queridos pelas crianças das décadas de 1960 à 1980. Tive a oportunidade de adquirir dois baús, com, aproximadamente, uns 50 títulos, na ocasião do seu lançamento em CD. Infelizmente, creio que ainda faltem alguns...
Ele teve outra adaptação, feita na Itália, em 1976, na forma de musical, com o título “I musicanti”, que fez muito sucesso, tornando-se disco. Com letras e texto de Sergio Bardotti; música e arranjos de Luiz Enriquez Bacalov, artistas que também haviam colaborado no disco de Vinícius de Moraes chamado: “L’ Arca - canzoni per bambini”, a primeira versão musical do livro “A arca de Noé”, de 1975.
Bardotti, alguns anos antes, havia se tornado parceiro e amigo de Chico Buarque, quando verteu suas músicas de sucesso no Brasil, para o Italiano, no disco: “Per un pugno di samba”, de Chico, de 1970, lançado na Itália, na época do seu exílio.
Por causa dessa amizade, Chico pôde nos trazer, as bases do disco “I musicanti”, com todos os elementos de orquestra e arranjos, para então fazer a versão das letras para o Português, gravando, apenas, as vozes. Esta foi mais uma adaptação, bem sucedida, do conto, que aqui se chamou: “Os Saltimbancos”, em 1977.
Em 1981, o grupo de comediantes “Os trapalhões”, que na época enveredava pelo campo do cinema, fazendo diversas adaptações, com seguidos recordes de bilheteria, gravou um filme chamado: “Os Saltimbancos trapalhões”, mais uma versão do musical, que contou com algumas regravações e adição de novas músicas, todas, parcerias de Bacalov, Bardotti e Buarque.
É importante frisar que, até a época do Disquinho, não havia nada dirigido ao público infantil que o fizesse consumir, lotar cinemas e teatros ou comprar discos e álbuns de figurinha. Ele ainda não era tratado como público alvo ou nicho de mercado, como foi alguns anos depois, por um sem-fim de “artistas” de ocasião.
Fazia pouco tempo que os Beatles haviam aparecido e aquele comportamento febril, ao qual se denominava “bitolado” ou de “coqueluche” que, hoje, chamamos de “viral”, não era muito conhecido, muito menos compreendido como um fenômeno comportamental social e global.
Em contraposição a este alinhamento que se busca nos dias de hoje, é possível encontrar momentos históricos, nos quais, coube aos artistas, através de sua arte, o rompimento com a atitude e os costumes de uma época. Já que, enquanto seres e, por isso, sociedade, temos aquela, fatal, tendência à inércia.
Vítimas dela, corremos o risco de estagnar ou de querer permanecer no topo. Naquela óbvia situação em que vemos uma “estrela” querendo brilhar eternamente como tal e todos os que admiram ou não, querendo ocupar aquele lugar, por inveja ou admiração.
Na canção “Rock and Roll”, de Raul Seixas e Marcelo Nova eles dizem assim: “Já dizia Eclesiastes, há dois mil anos atrás, debaixo do sol não há nada novo, não seja tolo, meu rapaz. Mas nunca vi Beethoven fazer aquilo que Chuck Berry faz”.
Nessa verdadeira apologia à atitude questionadora, rebelde e, ao mesmo tempo, inovadora, do Rock, que em sua essência procura romper com o status quo e com toda e qualquer ideia de subjugar atitudes e pensamentos, através do medo, nossos heróis “Rauzito e Marceleza”, admitem que os dilemas do homem são sempre os mesmos, através dos séculos, mas lembram que sempre poderemos contar com nossa criatividade, para nos reinventarmos.
Não se engane, a arte pode se transformar, mas sempre é arte, nunca cópia barata, nunca um mero “copy e paste”. Um pensamento abstrato vira um desenho; uma ideia vira uma peça de teatro; uma frase se transforma em poema e um grito em canção; um movimento vira dança, uma imagem vira roteiro, uma foto vira filme e uma pedra vira estátua; barro vira vaso, roteiros viram programas de TV, linhas de sistemas trazem emoção para o computador, tablet e celular...
Sigamos no nosso dilema de "Tostines": A vida imita a arte ou a arte imita a vida? Qualquer que seja a resposta, somos muito mais. A vida e a arte, vão, bem mais além, do que a imitação.
Um grande abraço e até a próxima!