terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Coluna de Janeiro de 2019 para o Jornal Portal

Durante toda a adolescência, cumpri, fielmente, um ritual: chegar da escola, almoçar, colocar um LP para tocar e fazer uma sesta. Aos poucos, fui descobrindo que absorvemos as músicas de forma inconsciente, como se fosse por osmose.

Essa capacidade, vai tornando-se um tipo de programação, cria em nós uma tendência a gostar do que é mais familiar, uma predisposição ao que conseguimos prever e presumimos ter controle, reafirmando as certezas que já temos.

Por isso, também, acaba sendo uma barreira, um filtro, para coisas diferentes, que desvia nossa atenção, levando até, ao sono. E a taxar o novo de chato, sem graça ou sem nexo. Seria um resquício tribal de um esforço para ser aceito pelo grupo, negando inicialmente, a tudo que não reflete seus valores e tradições?

Daí, surge a procura por mais do mesmo. Uns ouvem cada vez mais música boa, outros pagam, cada vez mais caro, para ouvir a ruim. Algumas situações, porém, nos fazem deparar com o diferente e por curiosidade ou necessidade, nos atirar em mares nunca dantes navegados, dos quais acabamos por gostar.

Toda música, um dia, foi inédita. Mas, ao saber de alguma, que só nós não conhecíamos, nos aflige uma sensação de enorme perda de tempo: como nunca tivemos notícia de que existia? Mas vivemos em inércia. Segundo os físicos, um estado natural de tudo que existe, inclusive de nossa psique e comportamento.

É importante ter consciência deste aspecto da nossa natureza, para sermos vigilantes, não permitindo que outros assumam o leme de nossos ouvidos ou vidas. Não podemos ser escravos de outras vontades, mas, também, não devemos sucumbir a nossa própria ignorância e estar acomodado nessa condição.

Estar com o leme nas mãos, não significa ter controle sobre nada, a não ser, sobre nós mesmos. Agir segundo nosso livre arbítrio não fará a viagem mais calma ou as coisas, mais fáceis. Apenas nos dará a certeza de que ninguém está vivendo por nós, afinal, apesar de o mercado ditar o ritmo e as regras, somente, cada indivíduo pode saber, de verdade, o que cala e o que fala em seu íntimo.

Existe uma praxe de “resignificar” ideias e palavras, através de um mundo paralelo que distorce a realidade, atribui valores, aponta condutas, une água e óleo, na busca de criar uma falsa sensação de satisfação, condicionada ao consumo.

Como um senado que distorce a constituição e coloca o legal acima do moral. Haveria brechas na lei da gravidade terrestre? Ou perante ela, toda humanidade tem apenas uma experiência? Apesar da aparente normalidade, devemos perceber que qualquer condição que não abrange a todos é, sempre, questionável.

O marketing usa o processo subconsciente de aprendizagem, a capacidade de adaptação humana (ao luxo e ao lixo) e a tendência à inércia, como suas bases, estimulando o crescimento desse desmedido consumo supérfluo. Porém, podemos nos apropriar desse conhecimento e usá-lo para entender nossos dramas.

Vivemos numa cultura de muita pressão, paga com recompensas vazias que acabam por nos descolar da realidade. “Eu também sou filho de Deus, eu mereço”. Temos que olhar para os lados e procurar enxergar as armadilhas e venenos que nos são vendidos como poção mágica, antídoto ou remédio urgente.

Muitas vezes, agimos como viciados, de tão mal acostumados que passamos a ser. O refrigerante que era tomado nas datas comemorativas, quatro vezes ao ano, aniversário, Natal, etc, passou aos finais de semana e, depois, a toda refeição. Passou a ser um hábito, um mau hábito. Como o álcool e as drogas.

Não é preciso ser músico, para gostar de música, nem pintor, para gostar de quadros. Mas, é preciso tirar os óculos (que criamos) e nos fazem enxergar em preto e branco e compreender que a natureza tem muitas cores. E, não é razoável, aceitarmos ser monocromáticos, quando há tanta diversidade.

A programação cultural das cidades, rádios e televisão, aberta ou a cabo é muito rasa e limitada ao que vende. A cultura não é fomentada, pois não é considerada investimento. Até, nossas instituições públicas, patrocinam quem já não precisa... Sempre os mesmos, por todos os lados, canais e frequências...

Deveríamos ter mais opções e espaço. Cada pessoa tem um gosto único, que ainda mudará durante as fases da vida, por isso, carece de diferentes estímulos, em diferentes épocas. É uma demanda variada e natural, uma necessidade física e mental. Precisamos da arte, como do ar e, o artista, de fazê-la.
Para ter um gosto apurado, é preciso ter experiência. Experimentar, conhecer e viver. Ouvir música Clássica, Pop, Rock, Reggae, Samba... Desconfiar do que é oferecido de bandeja e, também, do que se diz alternativo ou contracultura.

Duvidando de tudo, como Descartes, só não duvidaremos de que duvidamos. Se duvidamos, pensamos e, se pensamos, logo, existimos. Liberdade é a escolha do caminho - quando possível - e da forma como vamos reagir ao que não escolhemos. Diante das pedras, lamentar ou usá-las de degrau para transcender?

Desejo a todos um feliz ano novo, com muita saúde, paz e ótimas escolhas!

Até a próxima!